Escrevi outro dia sobre o medo de morrer. Por conta de um papo hipotético e despretensioso com a minha médica quanto a um risco no meu parto. Graças a Deus, para esta fiel, a morte só passou pela minha cabeça e pelas linhas de uma crônica mesmo….

Aí, num domingo destes, às vésperas do nascimento da minha terceira bebê, fruto da minha nova família e de nome Antonella, assisto na tv uma matéria sobre um pai, técnico esportivo, que após uma vida na Europa volta ao Brasil com a sua família de três filhos e uma esposa, sendo os pequenos um menino e duas meninas, e a mais nova uma Antonella. A Antonella dele morre em um acidente de carro da família, assim como a irmã, mais velha, Valentina. Nomes fortes, em crianças que se foram. Que deixaram a família deles pela metade, a vida devastada. E como sobreviver a isso?

Sempre pensei na minha ausência, na responsabilidade como mãe de estar presente, e de repente me dei conta do quão arrogante sou em pensar assim. Do quão me considerei grande quando, ao me deparar com a possibilidade de perdê-los, virei um grão de nada. Que a felicidade de sermos cinco, de termos saúde, de termos uns aos outros, de nos amarmos, é agora. E de ter essa, como a única hora garantida.

Chorei com aquele pai, com aquela entrevista. Com a perda da Valentina e da Antonella dele. Chorei o dia todo. Fiquei pequena, pequenininha frente ao poder do universo, dessa vida a qual pouco temos comando, exceto ao aqui e agora. Senti vergonha pelos meus problemas pequenos e banais quando percebi que eu os tenho, os que mais amo, ao meu lado. No máximo os divido, os compartilho. Enquanto aquele técnico tinha perdido duas partes da família que construiu, para não dizer duas partes dele próprio.

Levei mais de um mês para escrever este texto após ser nocauteada por esta matéria do programa de esportes. Acidentes de carro me causam certa indisposição. Por si só. Minha tia, irmã do meu pai, morreu jovem em um acidente de carro, em tempos que eles eram raros, já que os carros eram simples e as estradas também, o que fazia com que os veículos não atingissem altas velocidades. Minha vó ficou devastada. Parte da família do meu pai morreu com aquela moça. Ele costuma dizer que eles jamais foram os mesmos, jamais se recuperaram. Pois ali, pais perderam uma filha, e essa não é a ordem natural das coisas.

Eis que, com a mesma idade dela, participei eu de um acidente de carro. Eu saí dele sem ferimentos, mas a outra pessoa envolvida faleceu no local. O que foi uma questão que precisei trabalhar por muitos anos em terapia, e ao meu emocional. E o que mais me choca neles, nos acidentes, é a forma abrupta com que tiram as pessoas de suas vidas, de suas famílias. E, preciso dizer, do seu pai e da sua mãe.
Desde então eles me dão certo medo. Pela sua capacidade de surpreender e tirar pessoas de você, que você ama. E como lidar com isso? Como recomeçar? Como aquele técnico poderia recomeçar sem a Valentina, sem a Antonella dele?
Não sei responder. Essa perda me calou. Principalmente quando vi ter uma Antonella envolvida… que era dele, mas que poderia ser a minha, ou a sua.

Ali, na falta das meninas dele, nasceu uma nova família. Uma nova constelação. Pela perda, não pela junção. Mas uma nova estrutura que precisaria se refazer, achando dentro de si outros motivos para seguir. Afinal, ficaram um pai, uma mãe e um filho, e estes precisariam continuar.

Novas famílias se iniciam a partir de vários acontecimentos. E o que as assemelha é a necessidade da construção da felicidade possível no depois. Inseri a palavra “possível”, porque em alguns casos ela pode existir entre aspas, dentro do que é viável. E ainda assim, a felicidade pode acontecer, construída há varias mãos.
Essa construção é exigente. Não é feita só de momentos felizes e fotos bem tiradas. Ela dói, faz doer principalmente logo após a disrrupção que culmina na necessidade de recomeçar. Mas não há outro caminho que não a reconstrução. Se não começar de novo. Se não fazer o melhor com o que ficou e dali plantar, cultivar e deixar florescer uma nova vida, fica difícil continuar.

Assim são os recomeços. Exigentes.

A cada encontro, a cada conversa com uma nova família, uma mãe, um pai em reconstrução de vida, admiro mais a capacidade das pessoas em se superar. Em criar novas alternativas…. Em buscar a felicidade no depois. A cada exemplo de nova família que assisto no meu dia a dia, me emociona mais ter tipo a oportunidade de me reconhecer e me ressignificar no meu processo, mesmo considerando a dor de cada passo. A cada evolução do projeto New Families, me sinto mais grata por, em algum momento na minha história, ter tido a ideia de compartilhar experiências, de me colocar vulnerável. De expor a minha intimidade, a minha família.

Porque o fato de não termos nada de especial e, em comum com tantos, termos dificuldades, me senti parte de um mundo maior, parte de um grande grupo e, por isso, menos só. E hoje, acompanhada. Porque assim novas famílias nascem. A partir de fins diferentes, sejam eles de estruturas, de pessoas, de constelações ou de sonhos. E eles exigem respirar fundo, ressignificar e recomeçar. Melhor, carregando o que nos sobrou nos braços. Que de sobra, só tem o fato de virem do mesmo passado que você no cenário em branco a recomeçar. E que são o que temos de mais caro, de mais valioso, de mais motivador para um reinício.

Quanto ao técnico esportivo, aquele da matéria, ah…. Ele continua nos meus pensamentos, nas minhas orações. Sigo pedindo por sua nova família. Para que, com fé, possam achar sua felicidade possível. E sigo lembrando do seu fato “disruptor”, para não esquecer nunca de valorizar o meu hoje, a família que construímos até aqui e o valor imensurável de suas vidas para mim.

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