Hoje saí da minha médica com a notícia da possibilidade de desenvolver, até o final da minha gestação, algo chamado placenta acreta. Foi identificada em uma visita minha improvável, na semana anterior, à uma emergência obstétrica, por conta da sensação de uma contração. Estava em uma semana de bastante stress no trabalho, e quando a barriga endureceu, achei por bem verificar se tudo estava bem com o meu bebê. Pois bem, a médica da emergência identificou esta anormalidade e ligou para a minha obstetra.
Apenas como esclarecimento, uma placenta acreta adere anormalmente na parede uterina da mãe. Em geral, por conta de uma superfície porosa, o que propicia maior penetração da placenta no local. No meu caso, que passei por duas cesarianas, a aderência seria no corte, na cicatriz, bem abaixo da barriga. Minha médica explicou que não há motivos para preocupação neste momento. Que devemos acompanhar até o final da gestação, e que se a placenta não se movimentar dali, entraremos na cesariana do meu bebê, preparados para uma cirurgia importante para dar conta da retirada desta placenta complicada. No caso, esta preparação exigiria bolsas de sangue, por conta da provável hemorragia no ato da extração, e a possível necessidade de retirada do útero para conter o sangramento. Mas foi quando li na internet que em casos graves pode ser fatal, foi que um medo novo me acometeu.
Estou na minha terceira gravidez e pela primeira vez fiquei com medo de morrer. Ou, em uma hipótese razoável, perder o meu útero. Essa parte tão importante do meu corpo para mim, já que me trouxe o que eu tenho de mais caro. Tive medo de perder os meus filhos. Tive medo de perder o meu amor. Tive medo de não ver a filha que está na minha barriga crescer. Medo da morte.
Nunca pensei na morte com medo. Sempre achei que ela é uma casinha no tabuleiro da vida, e que por escolha dos dados que jogamos diariamente, poderia cair nela. E ir embora desse plano. Naturalmente, como deveria ser o fim da jornada se considerarmos que não temos qualquer ingerência sobre ela. Mas aí, me vi em uma posição deste tabuleiro na qual estou feliz. Na qual conquistei muitos dos meus sonhos. Na qual estou amando o meu parceiro, estou envolvida profundamente com a vida dos meus filhos e agora sendo presenteada pelo ser que vem brindar a família bonita que construímos. E aí? Estar em risco agora? Enfrentar a possibilidade remota de não acordar da minha cesariana? De não estar com essa família que construí?
Tenho sim medo da morte. Tenho agora. Um medo novo. Ou velho, pois já me visitou nos momentos mais felizes. E aí entendi sobre a lógica da visita deste medo…
Ele vem quando estamos felizes, quando estamos bem. Quando nos sentimos seguros na nossa posição. Quando temos o que perder, a quem perder. E este era o ponto no qual me encontrava. Como é frágil a vida… Estava tudo planejado, pré-natal, nossa casa, nosso coração, e vi naquela possibilidade o quanto as coisas não estão nem um pouco no nosso controle.
Eu, uma mulher tão forte, submetida a sorte da minha placenta estar ou não estar nesta condição. Envolve transfusão de sangue talvez a retirada do meu útero enfim, hemorragia. Movida por este medo, entrei na internet assim que saí da consulta e pude perceber o quão grave esta situação poderia ficar. Fui do consultório até em casa pensando nas coisas que aconteceram na minha vida, e que me fizeram tomar as decisões que me trouxeram até aqui. E aí entendi a profundidade das escolhas que fiz. De ter, em muitos momentos, desconstruído coisas que não estavam bem para mim, que não me faziam feliz, e me proposto honestamente comigo mesma, a refazer meus castelos.
E me vi enfrentando o fato de que quando a vida pode acabar, importam os momentos felizes e reais que conseguimos construir, que conseguimos escolher. Neste momento, no carro ainda, comecei a chorar. Choro de menina. Fiquei tão grata por ter escolhido mudar e ter tido a oportunidade de estar grávida de novo, de ter uma pessoa que eu amo tanto, na constelação familiar que construímos, junto com meus filhos, que fez valer a pena o caminho todo. E isso fez o medo dos riscos que a vida daqui para frente impõe, real.
Levantei o rosto e olhei nos olhos dele. Do medo. E neste momento nos reconhecemos, e o meu coração se acalmou. Porque quis entender de verdade o meu medo da morte. Não o dos outros, não o trivial, mas o meu. E foi libertador. Quando pude olhar para trás naquele momento e reconhecer o que a minha vida tem e teve de bom. Dar valor. E aproveitar cada dia deste presente que é estar aqui.
OK, a placenta não é um mal tão grande. Tem ainda a violência, a morte acidental… A matada, e a morrida. Aquela que de súbito, pode nos levar. E então sequei meu rosto. Estava tranquila de novo. Já havia me olhado nos olhos, me enfrentado, quando as coisas não estavam bem. Mas agora, pela primeira vez, fiz este movimento quando tudo estava no seu lugar. Quando a felicidade estava na minha casa. E esta situação para mim resume a forma como poderíamos lidar com a vida frágil. Faz pesarem os verdadeiros valores que devem permear a vida da gente, determinar decisões diárias, consumir cada minuto nosso. Para quem sabe, não sobrarem arrependimentos. Não sobre vida não vivida.
E no caso da casinha da morte chegar, ter a condição de atravessá-la ciente do que sentiu e viveu, de verdade, e grata pela oportunidade. Essa que está aí, todos os dias, à nossa disposição. E que, pessoalmente, pouco deixo passar.
Sobre a placenta, não era nada. Meses se passaram e ela se movimentou. Não era acreta. Foi somente uma aula, um ensinamento. Mais uma oportunidade para eu reconhecer a perfeição da vida que tenho, do jeito que é. Mais um encontro entre eu e o medo. Mais um laço. Entre eu e ele, entre eu e o meu presente.
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