Tenho ouvido de muitas que o divórcio é a morte em vida. Essa frase também é minha. Tamanho estrago que causa, eu sei. Que ele devasta razão e emoção, pois nem racionalmente se mitiga a dor deste movimento. Que deixa alguns pedaços de pessoas e afetos transformados, minguados pelo desgaste do fim, e espalhados de uma forma impossível de juntar. Misturados, como quando um saco de missangas cai na grama e você tenta achar entre terra e folhas aquelas bolinhas miúdas que, de repente, desaparecem na imensidão verde. Aqueles pedaços de gente, de sonhos, de crenças, de pensamentos obscuros, de sensação de fracasso. E este fim, que começa em algum momento lá atrás, e que poucos de nós sabe dizer precisamente quando, em que ato, mói a família, começando pelos adultos. Pela mulher e pelo homem. Que consciente ou inconscientemente, se encontram assim. Virados em matéria prima para a reconstrução do que der, do melhor possível.
Nos meus estudos e vivências venho há tempos buscando a raiz dessa avalanche emocional e física, e cheguei a uma possível explicação para esse acontecimento tão comum na vida das pessoas. Desse que machuca tão profundamente os indivíduos de uma família, agravado para aqueles que tiveram filhos, sendo este, outro acontecimento divisor de águas na vida.
O divórcio não acontece somente com o cara que um dia você amou e não ama mais. Ou com o cara que não foi leal, ou com a falta dessa lealdade em você e nos acordos gerados por aquele afeto que se transformou. Nos divorciamos de uma vida. De uma rotina. De um café da manhã, de um comportamento, de um jeito de se vestir, de usar o cabelo, do que de algum jeito já era misturado. O divórcio dói mais porque nos divorciamos da gente mesma, de um pedaço do que conhecemos de si próprias por todos aqueles anos de vida conjunta, mas não só deles. Mas da pessoa que nos levou até aquele casamento, aquela relação de amor. E aí, nos divorciamos daquela mulher que idealizou uma família. Que escutava a Rádio Gaúcha no carro todas as manhãs ou a rádio de rock and roll dele, por anos, e já não se dava conta do que realmente gostava de ouvir. De qual seria a sua escolha realmente. Daquela que passou a jantar comida ao invés do lanche leve, porque ele gostava assim e afinal, não custava abrir essa concessão. Daquela que mudou aqui ou ali o corte de cabelo, a cor dele ou o vestido, pois agradava mais ao parceiro de vida…
E quem não gosta de ver o seu amor feliz?
Esse é o mais duro divórcio. O divórcio de si e da vida que conhecemos. Não o do parceiro, que muitas vezes já aconteceu há tempos dentro da relação, e que só se sustentava pela ideia do porto que um dia foi seguro. Ou das conveniências, ou do medo do sofrimento dos filhos, como se a infelicidade dos pais não fosse o pior deles.
Essa passou a ser a dor central do divórcio para mim quando coloquei as vestimentas físicas e emocionais da época, de repente. Pois me dei conta dessa ferida gigante, da ausência do meu eu, dos meus desejos mais genuínos aos quais não me conectava mais, do vazio da rotina dessa mulher que já não existia viva e ativa, mas sim acamada, em uma UTI nos mais profundos túneis dentro de mim, era onde a sensação de incapacidade, fragilidade frente ao sofrimento dos meus filhos e de tristeza profunda, se apoiavam. Faziam casa. Sugavam meu sangue e atormentavam a minha alma. Foi a falta de mim sã que me desmanchou no meu divórcio. Que acredito que desmanche qualquer um.
Vou explicar. Pragmaticamente, achei os caminhos que percorremos, eu e o meu ex parceiro, e que naturalmente nos levaram até o ponto final. Eles são claros, e justificam movimentos saudáveis de dissolução de um casamento e redefinição da constelação de uma família. Eles amparam a reconstrução de vidas separadas com afeto e levantam uma nova relação entre as partes, transformada, mas cheia do amor pela causa maior, de criar junto caminho para os filhos. De exercer a parentalidade de forma amiga, saudável e amorosa. Reverenciando o passado vivido junto. O parceiro aquele que viabilizou parte dos seus projetos comuns, ali simbolizado pelos filhos, e que podem ser tantos.
Isso tudo se trata do olhar são e objetivo. Do que teríamos condição de efetivar se estivéssemos inteiros. Se não vivêssemos tanto a idealização da relação de amor, do casamento, e do que isso representa na prática, no dia a dia. Se respeitássemos quem somos e assim preservássemos a nossa essência e a essência do outro. Acolhendo nesse processo as diferenças com as quais realmente conseguimos lidar, e com as que não, sendo honestos e colocando na mesa. Dando a oportunidade da realidade falar. E frente a ela, propor a construção de pontes. As que cada um consegue, na sua essência, levantar. E que é emocionalmente e fisicamente capaz.
Isso se trata de CONSCIENCIA e TRABALHO AFETIVO.
Só que não é assim, e aí o momento da dissolução do casal devasta. Destrói pelo tanto que não foi dito. Pelas transformações internas e individuais, não compartilhadas ou mesmo participadas ao outro. Pelo repúdio a questões nunca tratadas abertamente. Pelos medos não conversados amorosamente. E pela perda do eu de cada um nesse caminho, através das mãos negligentes, das vistas grossas e da arrogante crença quanto a invencibilidade daquela instituição que se construiu até ali. Aquela “Torre de Babel”. E aí, um negligencia mais, o outro aceita e ambos deixam de lutar e construir aquela relação.
Por isso dói. Por isso o levantar é tão exigente e estomacal. Porque a omissão conosco nos levaram a um ponto de dependência total naquela relação. Já não “somos” mais. Somos aquela família. Aqueles filhos, marido e rotinas. Deixamos de “ser”. Colocando de lado maior valor que recebemos nessa jornada. A nossa vida. O indivíduo. A evolução deste nas cenas da existência. Consciente e só. Que no meio de tudo, é o que somos. Seres solitários. Que só evoluem atentos, capazes e conscientes, se inteiros. Respeitosos consigo, o que promove, naturalmente, o respeito à inteireza do outro. E inteiros constroem felicidade. Em família, juntos, ou em família que vive em duas casas.
Estes transformam o afeto que os mantem juntos em um outro tipo de afeto, que vive em lares separados. E neste mundo ideal, o divórcio, quem sabe, não devastaria. Seria uma alternativa, esgotadas as tentativas. Uma possibilidade saudável e uma oportunidade de construção da felicidade. Um aprendizado para o lido controlador e arrogante do ser, dando espaço a relações sadias, compartilhadas, que visam o acompanhamento e formação de belas crianças, grandes seres humanos ali na frente.
Este é o movimento evolutivo que acredito ser o nosso caminho na vida. Esta é a transformação que imagino para as pessoas, para os seres humanos. Essa é a “tecnologia emocional” dos novos tempos, nos quais imagino que subamos mais um degrau. Essa que se traduz nas “soft kills”, exigidas e reconhecidas por aí, no desenho do mercado do futuro, e que vemos em nós, enquanto mulheres, mães, pais e adultos de referência, tão obsoleto. Tão nocivamente estagnado e enraizado, prejudicando o nosso maior valor na vida. Nosso eu e a nossa família. O nosso legado.
Então convido você a promover esse olhar sobre si. Sobre a forma como estamos abrindo mão de nós mesmos e neste caminho exigindo o mesmo do outro. De como entendemos as nossas relações de amor, de família e de criação de filhos. Ou não sobreviveremos no futuro. Nesse que já aponta processos de aprendizado modernos, do aprender, desaprender e reaprender, do compartilhar e não do possuir, do respeito ao outro e da construção de relações nas quais cada um entra com o seu valor e por ele é valorizado.
Não cabe em um mundo melhor o controle, a falta de autonomia, de amor próprio e a natural dificuldade de amar genuinamente o outro com as suas diferentes potencias. Essas que você pode não ter e eventualmente desdém. Não cabe a falta de lido com a mudança, com a proposta do outro de ajuste ou esta mesma necessidade vinda de nós mesmas. Não cabe a falta de lido com o que não dá mais. Com o que não estava bom, e por algumas mãos se faz findo. Não cabe a falta de amor e de consciência de merecimento do melhor consigo mesma. Não cabem relações infelizes. Temos uma vida para construir felicidade, equilíbrio e harmonia com o que temos em nós. E se isso não é uma busca constante em você, essa que começa na construção e respeito por si mesma, para tudo que está errado.
Tua rota não te levará a lugar nenhum que não seja o velho e conhecido túnel escuro pelo qual já passaste. Pelo qual já passamos. Este que me ensinou outro caminho. Que me faz estudar e me cobrar o melhor, diariamente. Este para o qual não volto mais. Que me levou a mim mesma, ao reconhecimento desta mulher, meu maior valor na vida. E que desejo ser o seu caminho, assim como, você mesma seja o seu próprio tesouro. Do qual cuidarás a partir de agora, se já não o fazia ontem. E que é um processo, no qual estou aqui na torcida e na ação, por nós duas.
Avante! Existem muitas formas de amor e de família. Existem muitas possibilidades de felicidade. Te desafia. Pede ajuda e constrói diferente. Depois disso tudo prometo que te sentirás mais forte, mais capaz. Faço este caminho todos os dias… Mas principalmente, te sentirás mais inteira. E isso, ah… não tem preço e ganha vaga no futuro. Um vivo, honesto e feliz.
Comentários
Perfeito, perfeito, perfeito!!! Ainda não tinha conseguido parar para ler, mesmo qd comentei, ainda não tinha lido!!!
Traduz muito bem a dor que sentimos, eu amadureci e descobri, depois do meu divórcio que a felicidade está em mim e não em um relacionamento e agora após 3 anos, me considero pronta para formar uma nova família, com um parceiro, pq como tu bem disse um dia, eu e meu filho já somos a nova família.
Me vi nas tuas palavras, cada um sente diferente, mas eu sinto as dores da alma até dos outros e para mim foi sofrido assim e cada dia está deixando um pouco menos de ser…sempre caminhando!!!
Obrigada pelas suas crônicas!!!
bjs
Que linda, Carolina. Ser feliz de novo começa por reconhecer o que somos e o que temos. A nossa nova família. Aí, passamos a ter o que oferecer e trocar com o universo:) Um beijo enorme e felicidades sempre!
Oi Ju!! Que lindo esse texto! Estou separada há quase um ano depois de um relacionamento de 20 e uma filha maravilhosa de 8.
Tenho 34 anos e começamos cedo nossa jornada… de muita luta, muita queda, muito choro e muita, mas muita insistência. Estou conhecendo outra pessoa, e não havia parado para pensar no que você escreveu sobre se divorciar das “coisas” da rotina, do jeito do outro. E sim!! Porque inúmeras vezes me peguei pensando no meu ex marido, e me perguntava? sinto falta dele ou das rotina, das coisas e da pessoa que me tornei? E a resposta era sempre a mesma: da rotina, do movimento familiar, que eu sempre sonhei, dos almoços que eu preparava aos domingos, das conversas, era a saudade do “conhecido”. Será que um dia vou conseguir “relaxar” nessa minha nova realidade?
E acho Ju, de verdade, que essa saudade ( se assim podemos chamar) não passará nunca! Porque foi nessa realidade que minha filha cresceu e nessa realidade que pude vivenciar várias experiências que me trouxeram até aqui.
Não é fácil ainda para mim, “admitir” que sou separada/divorciada,,, ainda tenho uma certa resistência. Me dou super bem com meu ex marido e acho isso muito bom. Claro, é uma convivência com muitas limitações, assim como foi nosso relacionamento.
Adorei conhecer seu trabalho e já sou fã de carteirinha!
Mil beijos!