Lidar com as diferenças em um mundo de indivíduos sempre foi um desafio para o ser humano, que por séculos, não foi realmente encarado. Honestamente. Pois lidar significa enfrentar, suportar, resolver, superar, administrar… conviver da melhor forma. Não, guerrilhar. E a guerrilha entre as diferenças fazem parte da nossa história.
Talvez não tivéssemos evoluído na nossa condição humana, de verdade, se em algum momento não fossemos bárbaros. Se não tivéssemos assistido a ignorância e a intolerância, e convivido com as suas consequências. Muitas vezes na posição de vítimas delas, inclusive. Foi vivendo estes “infernos” que entendemos, muitos de nós, hoje um batalhão, que é preciso respeitar a forma, a opinião e o estilo de vida do vizinho. Que é preciso respeitar o outro ali do lado, como pensa, sem a necessidade de concordar.
Pois bem, quer saber quando enfrentei o maior desafio da minha vida no que tange “lidar” com a diferença do outro? Não foi em um debate na escola com lideranças estudantis, nem no lido com pontos de vistas diferentes em tantas passagens profissionais, nem em mesas de bar com amigos entre discussões sobre política, nem no convívio com pessoas que acreditam na liberdade menos do que eu. Aconteceu quando o pai de dois dos meus filhos saiu de casa, e com ele, suas malas, crenças, entendimentos sobre a vida e a forma de ser pai. De exercer seu papel. De educar.
Aquele que antes era debatido e consensuado comigo, de repente, naquele momento, passaria a ser exercitado individualmente, sem filtros. No caso, o meu, orientado pelas minhas crenças. E que me exigiu respirar fundo e respeitar. Desde que não representasse prejuízo ao bem-estar físico e emocional dos meus filhos, o que era o caso. Feliz ou infelizmente. Pois se acontecesse, talvez eu tivesse justificativa para o desrespeito à condução alheia, ao jeito do outro. Mas ao contrário, me exigiu lido. Com o outro lado da moeda. Com a outra torre de luz de Joana e Joaquim.
São diferenças de olhar, de postura, de abordagem, de acolhimento. Diferenças no educar, na tolerância, no brigar ou no punir. Na organização das roupas e do que é prioridade. Diferenças na compreensão do seu papel, que também é diferente. Que é de pai, enquanto o meu é o de mãe. E das diferenças com relação a espiritualidade.
Quero contar para vocês nossa experiência quanto a orientação religiosa nas casas de Joana e Joaquim. No lido com crenças diferentes, assim como acontece em tantos outros âmbitos os quais permeei…
Sou de família católica, os mais antigos super praticantes, os mais jovens mais adeptos à oração e aos rituais. Para mim, durante a vida, pedi muitas vezes pela ajuda de Deus, na ausência de alternativas aparentes para problemas corriqueiros ou mais graúdos. Quando a coisa apertou mesmo. Que é o comportamento usual da maior parte dos que se dizem cristãos. Só que vivi momentos realmente exigentes. E acredito que são eles que nos levam às profundezas do bem e do mal, e por isso, a nos conectarmos a outras forças, outros apoios.
Me tornei realmente uma pessoa espiritualizada após a minha separação. Quando lidei com o inferno em mim. O meu inferno particular. Do que eu mal podia compreender e com a dor que percebia na minha família e que era consequência daquele movimento todo. Naquele momento recorri a Deus. Estava sozinha e foi o jeito que encontrei de me sentir amparada. Vezes em orações, vezes lendo livros de espiritualidade, me conectei a valores vitais, genuínos do ser, e que estão na base do que somos como pessoas, antes de mães e pais, antes de “divorciados”. Anterior ao insucesso. Relativo ao que fazemos com os momentos de aprendizado da vida. Pois ela nos oportuniza recomeçar a todo o momento, e ali, senti menos culpa, menos dor e mais merecedora da oportunidade de construção da minha felicidade no depois. No dia seguinte. No meu casamento. Na minha maternidade. Na minha história profissional, que precisei reescrever. E assim vim ampliando a espiritualidade na minha vida e consequentemente na vida da minha família.
Eis que meus pequenos grandes, Joana e Joaquim, chegam a idade de fazer o processo de catequização, para a primeira comunhão. Desejo para eles essa experiência de todo o meu coração, como forma de, de alguma maneira, se conectarem a valores humanos genuínos como amar e cuidar do próximo, não roubar, matar ou desejar o que é do outro. Como o respeito e o perdão. Coisas que vão além da vida capitalista na qual vivemos hoje.
Não tenho a ilusão de fazê-los cristãos praticantes. Eu mesma pratico a religião na minha vida, do meu jeito. Da forma que faz sentido para mim. Mas acredito ser importante que eles conheçam as opções, e a proposta da catequese seria uma forma de fazê-los refletir sobre a espiritualidade das coisas e o lido nas relações humanas. Com as perdas da vida, inclusive. Pois com o ganhar, é fácil lidar. E a minha preocupação sempre foi com o lido nas experiências realmente ruins. Nas quais a espiritualidade deles poderá fazer a diferença na forma como irão passar por qualquer coisa.
Só que o pai não acredita ser importante. E, de repente, isso foi uma pedra no meu caminho. Exigiu diplomacia e negociação para que ele permitisse, na gestão conjunta da guarda compartilhada, que eles recebessem essa orientação de forma unilateral, da mãe. E ali, naquela oportunidade de debate, obtive a permissão.
Duro isso. A falta de controle da gente na gestão do compartilhamento dos filhos… Se fossemos casados, esta seria uma imposição minha e pronto. Só que não somos. Neste terreno delicado sobre o qual vivem as novas famílias, tudo exige negociação. Ponderação e análise de pontos de vista. Mas principalmente, de respeito. Pois não poderia exigir algo que é importante para mim, do pai deles, “goela abaixo”. Então, decidimos juntos, que a minha solicitação não faria mal a eles. E aí, começaram a catequese.
Na reunião de organização do início dos trabalhos na igreja, foi dito pelo padre e pelas catequistas que a criança que não frequentasse as missas dominicais com a famílias nas datas das entregas do processo de catequização, não fariam a primeira comunhão. Minha Joana encheu os olhos d’água naquele momento, já sabendo das dificuldades que teríamos na conjuntura da nossa nova família. O que naturalmente também me preocupou, além de deixar claro que o compartilhamento não é fácil para ninguém, nem para ela.
Considerei que, apesar da flexibilização que tive com o pai quanto a participação deles nessa empreitada, ele naturalmente não se comprometeu com as idas à missa, necessárias ao processo que viabiliza a primeira comunhão. E se eles não comparecessem, nos finais de semana do pai, perderiam o direito de finalizar o processo.
Mais um momento de negociação. A vida das novas famílias não é nada fácil. São sucessivos fóruns de debate, de argumentação, de malas de roupas a orientação espiritual. Imaginem vocês que eu fui parar em uma reunião com o padre da paróquia para contar a minha epopeia na tentativa de fazer com que os meus dois filhos pudessem fazer a primeira comunhão e a diferente orientação do pai. Precisei argumentar sobre a necessidade de flexibilização da igreja quanto a presença das crianças em todas as missas, no contexto em que vivemos. E pedi respeito à minha família. Pedi respeito à posição do pai deles. Pedi compreensão. Nada mais cristão que isso, afinal…
Os olhos do padre estavam assustados, querido… Não sei da experiência dele com viventes como nós, que constroem diariamente soluções e novas estruturas para mundos uma vez devastados. Para novas famílias em construção. Para o lido com pais separados. Com a dificuldade que vivemos na rotina do compartilhamento de filhos, seres vivos, que precisam ser oportunizados a viverem o que quiserem, com liberdade. No caso deles, como qualquer criança de família dita tradicional. Então pedi pelo nosso direito de orientarmos nossos filhos na vida cristã, independentemente da estrutura familiar deles.
Ele nos acolheu. Se permitiu acomodar a nossa família do jeito que ela é. Abraçou a chegada das minhas crianças à igreja católica, essa que há pouco, não aceitava o segundo casamento. E que ali, exercitou o respeito às diferenças e o desejo de uma parte. A minha tentativa. O caminho que quero mostrar a eles, apenas como opção. Sem garantias quanto ao sentido que fará nas suas vidas.
E os meus filhos estão na catequese. Frequentam a missa domingo sim, domingo não. Respeitam a escolha do pai, e a da mãe. E outro dia, em um dos encontros, abriram um bombom com uma mão sua e a outra do amigo. E entenderam sobre ajuda e compartilhamento. Sobre comunidade. Sobre amparo nas dificuldades, esse que pode vir de um desconhecido.
E era isso… só o que eu queria nas tantas mesas de negociações nas quais passei.
Comentários
Ju você é fantástica.
Oi Juliana!
Verdade, como precisamos de amparo na nova caminhada e como ele muitas vezes não existe, inclusive dos “lugares e pessoas” que imaginávamos que teríamos e, em contrapartida, somos surpreendidas com a bondade vinda de onde não se esperava!
Essas negociações são tão difíceis, né?! Nos causam um desgaste físico e emocional gigantes…eu e o pai do meu filho divergimos em muuuitas coisas, na educação do Pietro principalmente, na rigidez, na tolerância, na forma de punir, de tratar ele, de se fazer respeitar, mas até que na “religião temos semelhanças”… eu sou espírita e ele budista, mas desejo que meu filho faça catequese quando for a hora, espero que ele concorde…mas não é fácil…é um exercício diário…
Vi que seu próximo evento será tb em uma quarta-feira, são os dias em que dou passe num centro espírita, mas vou faltar qualquer hora dessas para poder te conhecer pessoalmente!
Me identifico tanto com tuas crônicas/dificuldades, que parece que somos “próximas”!
Bj querida!
Verdade, Carolina… Sinto que nos conhecemos:)
Adoraria realmente te ver no evento do dia 24/04 para trocarmos ideias, seria o máximo.
Tenta! No último tive o prazer de conhecer uma amiga tua, a Andreia Fernandes… uma querida!
Beijos! Estou na torcida pela tua presença:)