Me dei conta que eles levam um tempo para voltar. Que eles chegam, mas não chegam. Por alguns minutos, ou horas, ficam estranhos no ninho. Nesse nosso, tão deles quanto meu, da irmã bebê e do pai do coração.
Não acompanharam as últimas da família, a mudança de lugar da cadeira da sala, o arroz de leite feito no sábado, na geladeira, e que não existia na sexta, antes de irem, que eles adoram. Os dentes da mana bebê que nasceram, dois de uma vez. Isso entre sexta a noite e domingo. Começou a caminhar mais ágil também, agilidade esta ganha no exercício, no tempo, este que acontece também quando eles não estão aqui. Perdem coisas, daquelas que também perdemos.
Me senti estranha com aquele pensamento. Egocêntrica. Quando, por mais de quatro anos, pensei apenas sob o meu viés. Sobre aquilo que eu perco da vida deles como mãe. Festas, encontros, experiências divertidas e mesmo as frustrantes, pelas quais passam no mundo do pai. Dentes que caíram, tombos, discussões e conflitos os quais não pude ponderar com o meu jeito de ser mãe.
Quando eles vão, não paro de pensar que naquele espaço de tempo o qual não estão aqui, comigo, estão vivendo coisas sem mim. Fui me acostumando com a ausência temporária deles e ajeitando meu mundo neste intervalo, construindo primeiro analgésicos para a saudade. Depois pequenas diversões, prazeres para o tempo livre. Aos poucos, fui estabelecendo vida neste espaço. E com telefonemas controlados, no máximo um por dia, ia acompanhando flashs do que estavam vivendo, daqui, de longe. Sem olhá-los nos olhos, sem saber das suas emoções e lidos com cada coisa nova e velha pelas quais passaram.
Fui aprendendo como mãe a compartilhar. A fazer a malinha de cada um, a dela rosa antigo e a dele, preta. As mesmas que possuem desde pequenininhos, desde que as usavam para saídas com o pai e a mãe.
Não me dei conta. Com todo o exercício de empatia que pratico nessa nova vida que escolhi, não fui capaz de, neste quesito, sentar na cadeira deles antes…
Coisas eram importantes para eles naquele contexto, mesmo que ainda, às vezes, inconscientes. Suas malas e as suas chegadas e partidas.
E me caiu a ficha. Sobre seus olhinhos, antes pequenos e agora mocinhos. O quanto sentem o que perdem quando não estão aqui. O quanto percebem que as nossas vidas andam na ausência deles. Na qual doces são feitos e comidos, viagens e passeios são realizados nos finais de semana do pai, dentes crescem, a irmã aprende a andar e aniversários de parentes acontecem sem eles.
Percebi e confesso… me entristeci. Foi o primeiro sentimento que tive.
Costumo acolher a dor, falo muito desse processo de evolução aqui. E se a minha primeira sensação foi de tristeza, ok. Está tudo certo. Tenho o direito de senti-la para assim poder trabalha-la.
É fato que a vida não é perfeita e que escolhas geram perdas. Assim como escolher ter uma vida profissional e ser mãe, e nessa decisão, perder acontecimentos e crescimentos dos filhos, desses que acontecem de um segundo para o outro. Como os primeiros passos. Os quais tive o privilégio de acompanhar, dos três, e por sorte, mas que o meu marido por exemplo, perdeu. Enfim, perdemos cenas. E quando me deparei com o compartilhamento das crianças, precisei exercitar ainda mais o meu lido com a perda de cenas da vida deles. Mas jamais havia pensado nas cenas que eles perdem da minha. Da mãe, inicialmente, mas que agora, são de uma família. Perdem cenas da irmã, do pai do coração. Perdem finais de semana com os avós da minha parte, da família que ganharam. Perdem um jantar que eles adoram e um dia de sol em casa. Sentem saudade da cama deles. E outro dia, me pediram de presente uma mala de rodas…
Uma mala. Que criança pede uma mala? Que vontade de chorar me deu…
Pedem malas as crianças que as tem como amigas. Como apoio, como um objeto de real importância. Neste caso, parte deles. E os meus filhos desejaram ganhar uma mala de aniversário.
Quando penso que peguei todos os detalhes dessa novela que é o estabelecimento das novas famílias para as suas crianças, me aparecem coisas dessas…
A mala passou a ser um objeto de desejo deles. Passaram a montá-las do seu jeitinho, comigo. Nela colocam pertences como roupas e sapatos, obviamente, mas hoje complementados com itens íntimos como um livro de cabeceira, o estojo dela de cremes que sempre guardou aqui, outro com assessórios os quais adora, a carteira de dinheiro, as cartas “Pokemon”, a camiseta que adora junto com aquela bermuda que não combina, mas que é daqui. E assim, com as suas coisinhas, vão para lá e para cá, por vezes correndo, animados, por vezes se arrastando… Pois sentem o que perdem em cada uma das suas casas quando se vão.
E entendi, mais uma vez, a força deles. Que aquele momento da chegada para o qual eu atribuía culpa à agitação e à diferença de rotina do pai, outras vezes ao excesso de programações nos dias de lá, originando até uma certa falta de conexão com o nosso ambiente aqui, eram apenas os efeitos da chegada. Peculiares aos viajantes. Aos mochileiros, que levam um tempo para se sentirem em casa quando chegam. Que vêm de outra história, em outro ritmo, e de repente, se vêm em um ambiente onde a orquestra toca outra música, o embalo é outro, com outro perfume, horas usadas e pratos consumidos do que não viram acontecer. E então, não era nada daquilo que eu achava que sabia sobre. Eles estavam apenas tomando seu tempo para chegar. Entendendo a cena. Os olhares, o tamanho da saudade que tivemos deles, o tamanho da nossa expectativa pela sua chegada. E ali, enfrentando o que perderam ou o que era diferente do que idealizaram.
Sobre as malas? Joana ganhou uma de aniversário, agora em maio. Minha sogra, emocionada com o pedido deles e levando em consideração que o aniversário do Joaquim só acontece em novembro, trouxe uma para ele de viagem.
No domingo, quando chegaram do pai, entraram correndo, agitados, e a nossa casa estava cheia da família. Percebi seus olhares surpresos, administrando o fato de que, quando estão lá, perdem um tanto aqui. Com a gente, com a família deles. O que, tenho certeza, deve acontecer ao contrário, quando chegam lá. E por horas se sentiram fora disso tudo.
O meu coração doeu. Sou uma mãe, e só o que busco na vida, no exercício deste papel, é ser casa para eles sempre. Só que eles estão crescendo. Entendendo o mundo do qual fazem parte. E neste contexto, da nova família, antecipando algumas sensações, sob os nossos olhos de pais. Compreendendo o efeito das escolhas, da presença, que se torna ausência em outro lugar. Que é tão da vida, mas que eles passaram a conhecer ainda pequenos.
E enfim chegaram. Horas depois. Foram se aconchegando, cheios de saudade, testes e olhares, ocupando seus lugares entre nós. E ali, precisei assistir e respeitar o tempo deles. O “construir” aqui. E então o Joaquim foi avisado pela vovó que da viagem veio um presente especial.
E ele então diz animado: Uma mala??
Sim meu Joaquim, uma mala cheia de amor da vovó… Para ser a tua companheira de estrada, assim como a Joana tem a dela. Onde poderão carregar um pouquinho daqui, um pouquinho de lá, e misturar entre roupinhas, sapatinhos e objetos pessoais. A qual unirá seus pontos na vida, seus sonhos, suas casas.
Pois de tudo o que ganhamos neste novo cenário que construímos juntos, algo se perdeu. Algo que, após o divórcio, constitui, com sorte, o único ponto o qual não conseguimos remediar. A presença do pai e da mãe na mesma casa. E se conseguirmos que este seja o único inconveniente, prometo como mãe, construir caminho pleno para as rodinhas das suas malinhas. E respeito às saídas e às chegadas dos meus amores. Pois serão muitas na vida. E começamos a aprender como fazer agora. Juntos. A nossa família, a de vocês com o pai, as nossas casas, a segurança do tanto de amor envolvido, a certeza da espera e as duas malinhas. Azul e prateada. De rodinhas. Para assim, facilitarem e encurtarem esse trajeto que liga o que será sempre de vocês: o pai e a mãe.
Comentários
Nossa Juliana…Tô no trabalho e me segurando para não “cair aos prantos”, não sei lidar com isso…sofro tanto por ele, meu filho…eu já havia pensado na perspectiva dele e ele já se deu conta também…mesmo com 6 anos, quase 7, quando chega e liga o netflix e diz mãe tu assistiu tal filme sem mim, mãe tu foi para praia, pq tu viaja quando não estou? Queria ir junto….
E semana passada me disse no carro do nada, no caminho da escola, não queria que tu e o meu pai fossem separados, e aí a culpa me desestabiliza, penso no sofrimento dele, no convívio de pai e mãe na mesma casa que nunca terá mais por escolha minha e do pai dele e não consigo responder, não sei o que responder….
E neste domingo pegou no sono de tanto chorar, dizendo pq nós não morávamos mais na mesma casa, que ele queria tanto que morássemos juntos, que sente saudade quando está com um ou com outro…e eu não sei o que dizer, ele é tão pequeno para eu explicar que estávamos infelizes, mas e é tão sensível, meu filho vivia doente até eu me separar, depois nunca mais teve nada, sentia a minha tristeza, com certeza.
Eu faço terapia, já fazia antes, trabalho em um centro espírita, tudo em busca de evolução, de respostas, mas é tão dolorido…será que um dia passa?
A minha família se reunia todos finais de semana e o ponto de encontro sempre era na minha casa, agora digo este final de semana Pietro não estará, vamos deixar para o outro, pq ele também me pergunta se os avós, os tios estiveram lá em casa na ausência dele e me olha triste, como quem sabe que “perdeu aquele momento”…
Me emocionei tanto com teu texto anterior, sobre o trabalho de catequese da tua filha, que presente, que benção, ela te ver assim, ela validar/assinar embaixo as tuas escolhas, as tuas atitudes…deve ter sido um momento único, lindo, daqueles para nunca mais esquecer.
Antes de me separar meu casamento já ia muito mal, mas eu dizia, inclusive para o meu ex marido, nunca vou me separar pq meu filho vai sofrer, mas fui me dando conta de que não podia “me enterrar/desistir”, não podia mostrar para ele que aquela relação era um casamento… mas nossa é tudo tão difícil…
Enfim…qq hora vou ter que faltar ao centro espírita para ir aos teus eventos!
Mil obrigadas pelos teus textos!
Seu texto é lindo!
Sem dúvida alguma nossos filhos merecem ser plenos de pai e mãe, independente de divórcios. Mas é bastante difícil acertar as diferentes visões de responsabilidade e empatia em relação às crianças, e a maioria das famílias compostas não engrenaram, ainda. Estou nessa luta.
Débora, obrigada pelo contato! É uma luta mesmo… dia a dia, como todas as famílias demandam ou deveriam para construir caminhos de felicidade, amparo e amor para todos. Segue firme. A maior segurança que temos na vida é a de fazermos a nossa parte, com tudo de nós. Isso nos faz grandes mulheres e mães, com um imenso potencial de viver a felicidade:)
Um beijo querida! Juliana