Vivemos um momento digamos, peculiar, no que tange o enfrentamento dos maiores desafios humanos. Aquela que evitamos, todos os dias da nossa vida, desde o primeiro respiro, anda nos afrontando nua, desavergonhada, se exibindo e ao seu poder inegável de nos derrotar. Afinal, vem levando gente “a rodo” dessa vida.
Do dia para a noite, a TV conta mortos aqui e ali, como se montasse a tabela do “Brasileirão”. Ao invés de jogos, temos comunidades. Como técnicos de futebol, dirigentes de todas as nações gravam coletivas de imprensa, nas quais, ao invés de falarem de gols e craques, choram seus civis mortos pela doença que abateu o nosso planeta. Que colocou a morte como pauta diária das nossas vidas, mesmo que não gostemos de falar do assunto ou o tenhamos evitado, pela indisposição natural que causa pensar no finito.
Desde o nosso primeiro respiro vivemos a luta contra a morte, ou o medo de morrer, como preferirmos colocar.
Ok. Não vou chamar de medo, pois muitos alegam que este não é o sentimento que define a sua relação com a morte, seja por honestidade e autoconhecimento, seja pela estratégia de diminuir o inimigo potente. Então vamos chamar a morte de “inimiga”, na pior das hipóteses, e de “passagem”, na melhor.
Inimiga serve, por um lado, pois a queremos bem longe da gente, e se nos deparamos com ela, é briga na certa. Lutamos contra, com toda a nossa força vital, ou fingimos indiferença, quando questionados quanto ao seu poder sobre nós, talvez por excesso de confiança ou a real falta dela, o que exige travesti-la pela subestimação.
E quando pega alguém que a gente ama? É difícil de aceitar, causa revolta, mais aversão ainda. Promove a dor mais profunda de todas na vida, pois tira da gente o presente e o futuro da relação com aquele outro que cativamos ou pelo qual fomos cativados. Tira a troca, o olhar, as risadas, choros, a admiração, as memórias recontadas e revisitadas ao nosso bel prazer, na presença. Deixa de ser viva, de ter cheiro, cor e gosto.
E então, a morte se mostra a maior das vilãs.
Logo ela, anda à espreita por aí, em tempos de uma pandemia que nos assombra pela fluência com a qual evolui, com a quantidade de vítimas que produz, com o distanciamento que estabelece entre os que se amam, e por nos colocar pertinho da morte, como se ela, de repente, fosse viva. Ganhasse vida na sua alta frequência, na sua repetição, na sua autonomia em andar por aí, nos quatro cantos do mundo que conhecemos.
Sinto como um suspiro quente no cangote, como nos filmes de terror. Pelo medo dessa maldita levar pai, mãe, marido, filhos, irmãos, tios, primos, conhecidos, ou a mim. E aí? Não é de dar medo? Corremos dela, e agora ela deixa claro quem é que manda?
Então andamos ameaçados pelo que seja talvez, aparentemente, a maior inimiga da gente, que agora é dona das manchetes de jornais e do horário nobre da televisão.
Só que o covid-19 é só a fantasia da vez. A que caiu bem à morte, nesse seu “time novo”, que joga com vantagem, e que trouxe craques até então desconhecidos para o campeonato permanente que é a vida. Pois a realidade é que tantas vezes pontuou aqui e ali, com outras roupagens e sem uma bandeira, que lhe teve negadas as manchetes e o confete.
No inicio desta semana recebi a noticia de que um primo irmão, que tenho para mim como tal, perdeu a batalha contra o câncer, enfrentada em Barcelona, cidade a qual escolheu para viver, formar família e ser feliz. Lá, esse brasileiro do Rio Grande do Sul, incrivelmente talentoso, jornalista, dono de relatos e reflexões incríveis, e de uma humanidade que reconheci em poucos na minha jornada, encerrou seus voos pelo mundo. Se foi sozinho, apenas com a sua amada, sem a filha pequena, pais e irmãos, isolado pelo tratamento, e por conta da pandemia do corona vírus e da rotina que essa doença criou no país europeu.
Se despediu daqui em tempos de isolamento social, e por isso, sem um tchau. Das coisas mais tristes que já vi e vivi. A “danada” da vilã da historia, o levou embora sem o abraço do pai e da mãe. Sem a oportunidade de despedida, do encerramento que o nosso coração precisa para aliviar a dor e ensaiar um recomeço sem ele.
Mas quero falar do bem, ou não angariamos força para irmos em frente. Esse cara especial era grato. Mesmo enfermo, consolava os seus sob a crença de que a vida mais deu a ele do que tirou. Pode? Reverenciar a jornada de final tão doído?
Pode, para os grandes. Para os gratos, cheios de amor e de fé. Capazes de construir uma jornada de instantes de valor, e nela reconhecer seus privilégios. O amor que não lhe faltou, a amizade, a prosperidade, a intelectualidade e as oportunidades de evoluir às quais se agarrou, na busca de sair daqui maior do que chegou. Se utilizou de cada minuto ganho, com calma e afeto. O que tornou a sua despedida, em meio a esta guerra louca, um sopro leve de amor. Um pedido, em voz baixa, de luz e paz para quem fica, mesmo na dor.
Então, quem sabe olhemos para a melhor das hipóteses na nomeação da morte, agora? E observa-la como uma “passagem”, ao invés de “inimiga”? Nessa condição, menos hostil, sinto a tal da paz. Aquela desejada na despedida do meu primo, aquela que buscamos nos desfechos dos conflitos, e porque não no confronto com a morte?
Nessas horas, a única entidade poderosa que pode enfrentar a morte e seus estilhaços, que não se rebaixa a ela, que é grandiosa e salva a alma da gente, é a fé. E eu a colocaria de mãos dadas com as suas fieis escudeiras, a gratidão e o amor. Que não faltam aos que as possuem na sua mala, jamais.
Fé, gratidão e amor. Ensinamentos do meu primo Thomas.
É o que desejo que cresça em mim, que contamine o coração devastado dos meus tios, primos e da nossa família, assim como da nossa comunidade, principalmente dos que estão enfrentando a morte, seja na cama ou na assistência aos acamados, vestida com a fantasia que for.
Que este seja o vírus mais contagioso da terra. Grandioso e invencível.
Nunca recebemos garantia de tempo, nem de como, ou de onde. O presente, que é a vida, é um bem valioso, o qual compartilhamos com quem conquista este espaço e este direito, por um dia, mais outro, e quem sabe depois?
Então, que as armas da gente sejam a fé, a gratidão e o amor. Que elas, que nos desafiam neste momento a mantê-las sem o abraço, o beijo ou a despedida, se espalhem pelo mundo mais que os fins e que a dor. Que possamos nos aliviar na saudade de quem não podemos mais tocar. Naqueles “instantes” nossos, vividos juntos, e que se lembrados com fé, gratidão e amor, viverão sempre.
Não morre o que vive na gente, afinal. E se for um consolo, parece que quando se vai embora, na verdade, estamos regressando para casa… Será?
Se for assim, a morte é uma “passagem”, mesmo. A melhor das hipóteses… E acho que assim, desconcertamos a vilã da história. Pois a fé, a gratidão, o amor e o regresso para casa são realmente muito, mas muito maiores que ela.
Comentários
Gosto muito do que escreves,! Conheci os avós, o pai as tias Sara e Jae e o tio …a na e..me os ! Acho fantástico ver alguém Com. A tua sensibilidade e o dom da escrita simples, direta e culta .Parabéns.