Acho que triste de verdade não é viver dificuldades ou fins. Ou a despedida dos filhos pequenos, ou o término de um ciclo, ou a virada das escolhas. Estas são passagens, evoluções do andar, as quais nos demandam lidos e aprendizados.
Triste mesmo é não lembrar.
A memória é o baú de tesouros mais valioso da gente. Não importa a jornada que fizemos, no que ou com quem, a lembrança que guardamos, lá no interior da nossa paz, é majestosa. Emocionante. Nos traz a vida a qual vivemos, essa de momentos singulares, de volta. Afinal, acredito que somos o que vivemos. É tudo o que temos.
Você não deve estar entendendo nada do que estou falando, nem o propósito disso… Então vou contextualizar.
Há tempos virou brincadeira em família a minha falta de memória. Esqueço detalhes das historias, de dias triviais e de outros aparentemente importantes e que deveriam estar registrados em mim, mas que, por vezes, não sei recontar. Acredito que possa ter a ver com a quantidade de coisas que lido no dia a dia, com os desafios de mãe, de mulher, de profissional, de esposa, de dona de casa, de escritora. Da diversidade de cenas nas quais atuo. Da mistura das historias que ouço, e das minhas.
Somos na essência tão comuns, que nem sempre estão claras as diferenças vividas aqui e ali. Nessa nossa “extraordinária” ordinária vida. Mas também já ouvi falar que pode faltar espaço nas cabeças cheias que a gente tem… Mas este é outro assunto, para outra hora!
Acaba que me agarro nas emoções sentidas. Dessas, lembro bem. Acho que me marcam tanto, essas sensações, que é mais fácil para a minha cabeça lembrar o que sentiu o meu coração, do que os detalhes da cena que ele viveu. Se foi uma situação na qual ele se encontrou apertado, com medo e ansioso, ou confortável, feliz ou e em paz, disso sim eu me lembro.
Contei aqui muitos choros escondidos, em mergulhos na água, virada na cama, no balcão da cozinha, como também muitos momentos de alegria, sentidos em um sorriso percebido nos olhos do outro, dos meus filhos, de quem eu amo. Na calma de um olhar o qual consegui acolher, ou no desespero daquele que pouco pude ajudar. Naquelas situações em que a dor precisava ser vivida, sabe? Temos todos, e disso eu lembro bem. Só que hábitos interessantes, milenares e um tanto “modernosos ” no agora, sugeridos para proporcionar o relaxamento dos inquietos de hoje, tem me trazido o meu baú de presentes.
Vamos chamar de “mindfullness”, mesmo que, sobre a minha mente estar fazia, eu duvido.
Estava ontem fazendo a minha bebê Antonella dormir, como faço todas as noites desde que ela nasceu. E peguei o hábito de ligar músicas relaxantes, com sons da natureza, para tranquiliza-la e a mim, naquela “parada” obrigatória da minha noite com as minhas crianças.
É quando eu me ausento da sala, seja de um papo gostoso com vinho, cercada deles, seja da gente ali, enroscados no sofá, para acompanha-la então, a nossa Antonella, ao fim do dia dela. Nem sempre vou de boa vontade, afinal, se o programa em família está imperdível, sou eu quem o perde e saio para esta lida. Mas confesso que vai ficando delicioso estar ali. Eu canto para ela, ela canta para mim, e ao som da natureza, nos despedimos do hoje.
Costumo cochilar. Só que nesta noite, após o final de semana do dia das mães, eu estava curtindo a historia toda, a emoção que me causa, em especial, ter me permitido ser presenteada pelos aprendizados e vivências da maternidade, o que sempre me deixa reflexiva e grata, de certa forma. Então, de repente, a porta se abriu e a minha filha mais velha, Joana, adentrou e rastejou sinuosa para o meu lado, a fim de não acordar a irmã.
Ficamos ali deitadas juntas, em silêncio, na cama do lado. Senti os cabelos longos e fortes dela em mim, agarrada, curtindo aquele momento que hoje curtimos tão pouco, pois aos seus onze anos, não demanda que eu a “nane” mais, e nem sempre quer tanto chamego. E o cabelo dela cheirava bem e era vasto. Não lembro quando exatamente ela cresceu assim! É ela quem o lava, não tenho nada a ver com isso. É ela quem se cuida e das suas “coisinhas”. Cheirosa e carinhosa ficou ali, curtindo um colo deitado, daqueles que provam que tamanho não é documento e no qual cabe qualquer um.
Naquele momento, a mãe de vários em mim se perguntou: Será que eu fazia isso com eles sempre? Será que, pacientemente, os acompanhava bebês, todas as noites, como faço com a irmã pequena? Será que ela estava ali sentindo falta da mãe, do que eu não dava mais, ou de ciúmes da mãe que sou hoje, ou mesmo querendo um pouco daquilo que dedico ao bebê da casa?
A culpa tenta, força a porta. Que mãe de vários não morre de medo de ser “mais” para um do que para outro, e causar neles insegurança na sua própria origem? Ou a ideia de que a mãe ama em doses diferentes?
Eu assumo que sim. Que tenho medo de criar esta sensação neles mesmo que ela acontecer fuja totalmente da minha alçada. E sim, isso leva bastante da minha atenção diária. Mas ali, na ausência clara dos dias exatamente como eles eram, com cada um deles, me aconcheguei na sensação de ter sido uma boa mãe do jeito que deu, há tanto tempo atrás, quando comecei essa “cachaça da boa” que é a maternidade. E ali, de olhos fechados, ao som da natureza, senti meus pés na areia a caminhar, na praia da Silveira, em Santa Catarina, gravidíssima da minha Joana. Só eu e ela.
Caminhei diariamente naquela praia, naquele verão. Veranistas me ofereciam água e cadeiras à sombra para descansar, imaginando que uma grávida não poderia “maratonar” aquelas areias fofas ao sol, e chegar ao fim da sua rota com a bebê ainda na barriga, e bem. Passava sendo questionada seu eu estava me sentindo okay, se eu não tinha medo dela nascer ali, naquela praia. Mas eu sentia seguras, eu e ela, e acariciava aquela barriga com uma mão, enquanto a outra, carregava uma garrafinha d’água, e os pés, sentiam às ondas vindo e voltando frias. De ponta a ponta da praia. Sozinhas, somente eu e ela.
Essa foi a minha memória da gente naquele momento. Minha e daquela mocinha enroscada nos meus braços e pernas, buscando o colo da mãe, e eu dela. Não foi dela bebê, nem de aniversários ou comemorações de Dia das Mães da escola. Mal sabia ela que ali, ela estava em mim. Naquela lembrança embalada pelo som da chuva no bamboo. E naquele momento andávamos na praia, lugar que ela adora e eu também, como que presenteadas pelo baú das lembranças. Que se apresentou sem buscas e culpas, mas que me foi oferecida.
Essa é para mim a única agonia do tempo. Não tenho problemas em vê-los crescer, independentes. Em vê-los adquirem novos afetos e objetos de admiração. Novos portos, novos pousos. Em tamanho que mal cabe em mim. E tê-los por vezes longe, na casa do pai, também deles, no caso da Joana e do Joaquim.
Agonia é não lembrar. É o tempo e a vida, por qualquer motivo, seja na sua velocidade ou no seu acumulo de fatos, na falta do relaxamento ou pela doença, me tirar o meu baú. Meu maior tesouro.
Ele, aqui em casa está, neste momento, no iPad destinado às musicas de ninar da minha bebê. Nas horas de sono, no aprofundar do meu relaxamento, na minha “parada obrigatória” da noite.
Que isso, que me tem tanto valor, nada leve embora.
E no dia em que eu não precisar mais fazê-la dormir, nem ter o quarto invadido pelo abraço da filha mais velha, que eu possa achar outro momento mágico. Na ausência disso, uma outra fonte que traga eles de volta. Que me presenteie com cenas que me fizeram o que sou, a minha emoção, a mãe, a mulher em mim. Dessas cenas que constroem a gente. Principalmente aquelas memórias com tanta presença do amor na vida, que no final das contas, é o que fica registrado lá no fundo do coração, no sentir.
Se seguir meu companheiro, o meu baú, para revivê-los, e aquele afeto, bastará fechar os olhos, e recordar… E ali, a vida não me faltará jamais.
É um jeito, mamães… É um jeito. E se somos partes extraordinárias das mesmas histórias ordinárias da vida de mães e filhos, então, que tenhamos os nossos baús sempre conosco no coração.
Só quem tem um sabe o valor de uma memória.
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