Bons tempos aqueles, quando o afeto estava em tudo, e vivia livre para ser…
Tive duas avós. Uma por parte de mãe e outra por parte de pai, considerando o desenho convencional da minha família.
Uma delas, a vó Juraci. Trabalhava fora, fazia arroz doce sem leite condensado, deitava de ladinho, com a janela e a porta do quarto abertas, para um cochilo após o almoço, cena viva nas minhas lembranças. Fazia cama no chão da sala em todos os carnavais, para “maratonarmos”, eu, ela e a minha irmã do meio, os desfiles das escolas de samba, pela madrugada afora. Quando “maratonar” ainda não era moda.
Ela tinha unhas grandes, e eu costumava pedir arranhões nas costas, deitada no seu colo. Vivia cansada, disso eu lembro, pois trabalhava, promovia chás beneficentes e cuidava do próprio jardim, que cultivava em frente à sua casa, cheio de flores das mais variadas. Tinha uma língua “afiada”, e levava a família toda na “ponta da vara”, como se diz. Conduzia o fogão, e a entrega dos presentes no Natal. Pintava potes, como hobby, que ornamentavam banheiros e prateleiras da sala, cheios de algodões, cotonetes, chaves e até troco para o pão. Recebia amigas para o chá da tarde, vez ou outra, usava cremes nos pés e nas mãos, daqueles com cheirinho de “vó”, e foi a primeira mulher, da qual me lembro, a usar esmalte neon, novidade para mim naqueles tempos.
Era uma líder, não dá para negar. Mesmo naquela época. Parecia com uma executiva dos tempos de hoje, só que nos tempos de ontem. E isso a tornava uma mulher singular…
E eu a amava. Não costumava passar temporadas longas com ela, sozinha, sem meus pais, pois era uma mulher realmente ocupada. Mas eu a amava. Era recebida por ela e pelo meu avô, sempre com alegria e iogurtes na geladeira, como agrado. O jeito deles de demonstrar afeto, o que nunca faltou. Além disso, aquele movimento de “vida real” que eu via acontecer lá, me encantava. Talvez daí venha a minha inquietude.
Minha outra avó, a Bebel, era um ser especial, fora de série. Professora, catequista, simples, quieta, morava em uma cidade pequena do interior, com o meu avô, onde tiveram seus filhos e onde receberam eles e netos pelo resto de suas vidas.
Dona de uma casa grande, daquelas do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, sempre de portas abertas, não fazia cara feia para visitas. Acordava com as galinhas e era a última a deitar, depois de colocar todos na cama, tirar a carne do dia seguinte, e deixar a casa pronta para um novo amanhecer. Não lembro de ter visto alguma coisa fora do lugar na casa dela, nunca. Potes de bolachas caseiras, sempre cheios e em ordem nos armários, geleia de goiaba da estação na geladeira, gelatina de três camadas, a alegria da criançada… Tudo à nossa espera. Podíamos achar qualquer coisa naquela casa no escuro. Ela era uma mulher de processos, com certeza.
Degolava a galinha do “almoço ao molho pardo”, sem barulho, sem exibimento, nos fundos da casa, e coordenava almoços caseiros daqueles cujo cardápio se vê pouco nesses tempos. Cheios de envolvimento, de coisas “lá de fora”, como se diz. Costurava buracos de calças e meias da gente, varria a varanda, colhia limões do pátio para os nossos sucos da semana, cuidava da sua horta com o seu fiel escudeiro “Neri”.
Ajeitava cada ser naquela casa, silenciosamente e com delicadeza. Tinha a tarde da costura para os pobres, a ida nas irmãs, de visita, a missa dos finais de semana, às quais não faltava. E nos cantos da sua residência em forma de abraço, sempre se achava uma velinha, uma novena, uma “Santa Ceia”, um crucifixo, ou o seu “telefone vermelho” com o “cara” lá de cima, sinais reais da sua fé. Era uma pessoa cheia dela, a minha avó. E sim, ela tinha esse canal com Deus. Bastava eu ter um teste na escola, uma entrevista de emprego ou um dos nossos “luais da adolescência” na beira da praia, em uma semana chuvosa, que era só pedir para ela rezar por nós e pelo céu limpo, em uma de suas orações poderosas que: bingo! Não tinha para ninguém.
Sua sala de costura era cercada de fotos dos dezoito netos, assim como a sua casa, sempre cheia deles. Finais de semana eram para receber a família, e a semana era uma epopeia entre as casas dos filhos, a servir de baby-sitter dos seus descendentes. Viagem dos pais? Lá vinha a vó e a sua malinha. Férias de julho? Lá íamos nós com as nossas malinhas para a casa dela.
O engraçado é que não era uma mulher de afetos simples, desses que reconhecemos fácil, a olho nu. Poucos carinhos e beijos, quase nada de conversa. Mas eu sentia tanto o seu amor por nós, e a amava tanto, que nem sei dizer.
Confesso que acredito, de verdade, ser ela uma das mulheres das mais amadas e admiradas que tive o prazer de conviver na vida. Filhos, genros e netos eram doidos por ela. O meu avô então… Os amigos, a vizinhança, as irmãs, os sobrinhos. Tanto, que deu nome à sede da empresa do meu pai, que nem seu filho era. O querido homenageou a mãe de outros!
Mas sem toque vivia o amor da Dona Bebel. O amor dela estava no ar. Entrava por osmose, era dedicado através do seu cuidado e disponibilidade infinitos.
Quanto afeto né?
O engraçado é que as reconheço em mim, as minhas avós. Em quem eu sou hoje, e em cada um dos meus primos, criados sob as referências delas, tão pouco carinhosas no “toque”.
Às reconheço na força para o trabalho e no cuidado que temos uns com os outros. Na união, no valor que damos à família. Na forma como amamos os nossos. E o mais interessante é que somos todos muito, muito afetivos, daqueles que beijam, abraçam, apertam e dizem “eu te amo” para lá e para cá. Que se emocionam com uma história, com uma música tocada ao violão, com uma lembrança dos tempos na casa da vó, curtidos juntos, mesmo que sem “demonstrações carinhosas”, por assim dizer.
Isso me faz pensar que os caminhos do afeto têm seus mistérios, mesmo. Como sentir tanto o aconchego do colo daquele que nunca “abraçou”, o cheiro daquele que nunca viveu agarrado em nós, o “eu te amo” daquele que jamais o proferiu?
Pois bem. Parece que vivemos tempos de uma “pseudo” liberdade afetiva, que nos engessa com seus padrões e julgamentos. Com suas cenas padronizadas na demonstração do amor. Que muitas vezes nos fazem questionar esse amor sentido, mas não exibido, gritado aos quatro ventos em grandes momentos, fotografados e postados. É assim que o amor me parece hoje. A afetividade precisa virar post e emocionar uma leva de seguidores com a idealização do afeto em pacote de presente, com laço vermelho, fluído e entregue quase que de “graça” e despretensiosamente, como uma cena roubada. É de achar graça mesmo, se não fosse trágico pensar que demos rótulos e passo a passo aos afetos.
Talvez possamos abraçar, amparar, segurar e amar sem faze-lo do jeito que sempre conhecemos e aprendemos a cultuar, por concepção e propagação. Basta olharmos em volta, em tempos de pandemia, quando não podemos nos tocar.
Recebo todos os dias retornos sobre os “abraços” dados em quem precisa de um, no processo de divórcio e construção da felicidade no depois, com textos escritos do coração, no projeto New Families. À pessoas que nem sequer conheço ou olhei nos olhos uma única vez.
Percebes o caminho que o afeto faz?
Me dei conta no tempo, que o carinho da minha mãe, uma das pessoas mais incríveis e generosas que eu conheço, não se utilizou de braços e beijos, exatamente, para nos amar. Mas da atenção e dos cuidados que precisávamos, eu e as minhas irmãs, e que nunca nos faltaram. Que as palavras de provocação e força do meu pai, rudes, muitas vezes, eram demonstrações de afeto, impulso e fé na gente e no que desejava para nós, e não criticas ou desencorajamentos mal intencionados.
E o amor dos filhos, aquele que muitas vezes nem eles sabem falar sobre, mas que se esboça farto nos laços de confiança, na confidência íntima, no olhar admirado pelas coisas pequenas que fazemos? E no romântico, que vem de quem amamos, e que nem sempre se apresenta em um buquê de rosas vermelhas, ou no pedido orquestrado de casamento, filmado pelo amigo, sogra ou papagaio?
Como dizer que estão errados, todos eles e suas formas de amar, se possuo todos estes afetos cultivados em mim? Na minha essência, na mulher que sou? Quando me sinto tão amada e amparada por eles?
O afeto é realmente um caminho misterioso, que só se desbrava se abrindo e sentindo. Compreendendo o caminho feito pelo outro. Que nunca é igual. Não tem pacote padrão nem formato ideal, nem melhores práticas. Porque afeto é amor. E não há melhor modelo, cena ou receita para ele ser bom, e deixar marcas profundas na gente…
É só buscar no seu baú de histórias, como o amor se deu aí, no seu coração. Pode ter sido em uma xícara de chá quente, servido na cama, em um “arranhãozinho” nas costas, pelas mãos da sua avó, nas caronas madrugadoras do seu avô até a escola, nas críticas do seu pai buscando fazê-la acreditar em si, ou nos ataques de cuidado e cansaço da sua mãe, em meio ao isolamento, fruto de uma pandemia. Opa, essa é desses tempos, mas vai saber! Tivemos outros desafios na história, afinal…
A gente ama e é amado de várias maneiras. Somos aplaudidos de pé de várias formas diferentes na vida. Impulsionados e encorajados de tantas outras. E abraçamos a quem amamos e a quem precisa de jeitos que nem podemos imaginar.
Basta sentir aqui, aí e acolá, e deixa-lo transbordar sobre quem se ama, sobre quem precisa, sobre quem ou o quê achas merecedor dos seus sentimentos mais valiosos e profundos. É afeto, e afeto é isso. Sem julgamentos. Sem fórmulas prontas, que não se comunicam com o jeito que você é e ama na vida.
Deve ter um monte dele aí, nas suas memórias, tenho certeza.
Bons tempos são aqueles nos quais o afeto acontece livre, autêntico, e que é atemporal… Nada está tão na moda:)
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