Acredito que o exercício de perdoar nos coloca em linha com o que somos. Iguais e imperfeitos. Nos coloca em equilíbrio uns com os outros nas relações que estabelecemos. Nos coloca honestos e humildes frente a possibilidade de vacilo, inerente aos seres humanos. E não, idiotas.

Idiotas são os que acreditam serem melhores do que os outros, quando ainda erramos, primários, o mesmo, em cenas apenas diferentes… Não acontece vez ou outra com você? Do tipo: ah, mas aquela vez era diferente!

Tenho certeza que acontece sim, e está tudo bem. Afinal, não mudamos um comportamento enraizado, não curamos uma ansiedade, nem preenchemos uma lacuna na gente, do dia para a noite. Nem a gente, nem a humanidade, já que somos parte dela, que evolui conforme evoluímos, e vice-versa.

Às vezes precisamos de cortinas de fumaça no enfrentamento da vida, dos percalços, das dores e da necessidade de perdão.

Somos afinal tão sensíveis ainda à vaidade, à ambição exacerbada, ao ferir o outro para nos sentirmos mais confortáveis na própria pele, ou na escolha da “cegueira”, consciente deste mal, ou não, quanto às dores causadas aos outros, que nem sempre conseguimos evitar. Repetindo, subsequentemente, comportamentos egocêntricos, vaidosos e nada empáticos.

Repetir erros, e não corrigir o seu fluxo, é um hábito sistemático que fere. Se não fosse assim, sistemático e frágil, como o ser humano é, não exibiríamos pratos sofisticados de carré de cordeiro nas redes sociais, quando tantos não comem. Ou não abusaríamos do nosso eventual poder financeiro, quando a tantos falta o básico, o que acontece muitas vezes, dentro de casa, entre parceiros que compartilham vida. Nem na publicação da felicidade ou satisfação emocional aos outros, quando parte disso não é verdade, ou quando a intenção não é, simplesmente, impulsionar de forma positiva os que nos assistem.

Ainda nos falta romper modos, exercitar a generosidade e a conexão com a nossa humanidade. Mesmo que tenhamos vencido tanto neste caminho já, o que há de ser reconhecido.

A nossa TV em casa, infelizmente, durante essa pandemia, tem vida própria. Dorme apenas à noite, como nós, e olhe lá. Passa ligada entre desenhos animados, séries, vídeos do youtube e o Play Station 4. Duvido não saberes do que se trata aí na sua casa:) Mas enfim…

Dia desses a minha filha mais velha Joana, de onze anos, estava assistindo à novela das dezoito horas, na Rede Globo, uma de época, a qual retrata a história do Brasil, e o fazia completamente desconcertada e assustada. Frente às consecutivas relações extraconjugais de Dom Pedro, então príncipe do Brasil, ao poder “pátrio” dos pais sobre a família, à falta de voz e liberdade das mulheres para escrever o que pensavam do seu momento social, ou do seu coração, ou mesmo para usar calças, cobrar respeito, e igualdade de raça e gênero. Era muita desigualdade para os olhos da minha menina nos áureos tempos de 2020 e sua surpreendente pandemia. Então me perguntou se naquela época as mulheres não podiam se divorciar, recomeçar, tomar outro rumo. Porque não podiam se opor àqueles modelos, mesmo a resposta parecendo óbvia nas cenas teatrais do folhetim. Ela queria “entender”.

Fiquei abismada. Difícil de “entender”, mesmo sabendo que naqueles tempos, passos possíveis estavam sendo dados. Aqueles abusos da época ao ser feminino eram de embrulhar o estômago da gente que assiste. A gente que viu o mundo ser assim. Que sabe que foi verdade, que é, que em muito ainda persiste e nos enoja. Da gente que em parte acomodou-os, normalizou-os na vida, quando viu acontecer e relevou, perdoou, pois se tratava de uma época. Abusos de tantos jeitos diferentes, na fala, no desencorajamento, no desrespeito conjugal, no ambiente de trabalho. Por ser mãe, na voz, na opinião, que tanto foi piada, no rebaixamento à “pilotas do fogão”. Ou pela cor da pela e o seu espaço sempre escasso ou inexistente nas cenas prósperas e de construção da vida.

Vimos isso acontecer, e ainda vemos. Não nos tempos de Dom Pedro, que conhecemos pela história. Mas porque são abusos que, nas devidas proporções, permitidas pela evolução do nosso caminhar, perpetuaram em parte até hoje. E o difícil de explicar a ela é que para vivermos a liberdade que temos hoje, e que ainda busca tantos degraus acima, vivemos, lá atrás, a base da escada. Tempo difíceis de menos poder, menos escolhas, mas de conquistas bárbaras, das que se propuseram a dar os primeiros passos no caminho do que queríamos para nós.

Uma dívida de dezenas de anos, de séculos, que vem sendo transformada, todos os dias, e que precisa ser perdoada. Afinal, estávamos todos caminhando. E assim caminha a humanidade, não é? Lenta e para frente. Rumo a esta longa escadaria, um degrau de cada vez.

O papo com a minha filha foi longo. Não foram poucos os abusos que sofremos no passado, nem extintos no hoje, infelizmente. Somos, o ser humano, um tipo que erra, erra, erra, e de repente acerta. E nós mulheres, donas de passos lentos no tempo, alguns para frente, muitos para trás, na construção de relações justas nas suas cenas afetivas e profissionais, de família e de trabalho.

E um dos ganhos, por incrível que possa parecer, foi o direito pela escolha do divórcio. Pelo caminho de não viver mais o que não comunica com o nosso bem estar, com o que buscamos em uma relação de troca afetiva, com o que representa a nós o respeito, a parceria e o amor, ou mesmo, a estrutura de família que atende a todos. E assim, pelo motivo que for, qualquer um destes ou outro não citado aqui, ter o direito de se “reformar” e de recomeçar.

Nestes tempos, me senti agradecida por ter duas filhas vivendo uma era na qual possuem direitos sobre suas próprias vidas e escolhas. Tempos nos quais o perdão será um exercício mais frequente no lido com elas mesmas, com suas opções de vida, erros, acertos e condutas frente às suas histórias, do que com os outros, efetivamente. Tempos nos quais estamos mais passíveis a culpar a nós mesmas pelo que aceitamos e escolhemos, do que aos outros, quando somos enfim responsáveis pela jornada que é tão nossa.

Então, melhor aprendermos escolher, e a perdoar. Àqueles que erram de humanos que são, ou pela falta de humanidade nutrida em si, ou pela cegueira do que há em volta, ou só porque é difícil acertar. Porque é um processo muitas vezes lento, em outras, mais para uns do que para outros. A nós, que erramos querendo acertar, mas assim mesmo, erramos por errar. Porque é da vida, porque nem sempre temos controle sobre.

O importante é não pararmos de tentar, de atentar, de transformar o que for necessário, para então melhorar. E seguirmos escolhendo e perdoando. Pois lá na frente, nossas netas e bisnetas reconhecerão nossos passos, a nossa evolução na construção de relações justas, na construção da felicidade em cada depois.

E não queremos decepcioná-las, não é? Tenho certeza que não:)

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