Quantas vezes nos demos conta, nos encorajamos por um passo que uma outra deu à frente? Por aquela que foi parar na “arena”, por decisão ou porque “caiu” nela? O motivo não importa, nunca importou depois que o fato se deu. Ocorre que quando ela se colocou, aquela mulher de tantos nomes e de tantas cores, algo mudou em nós todas. Nos sentimos amparadas, identificadas, representadas, e por isso tudo, a partir daquele momento, “empoderadas”, como se diz por aí.
Nunca achei fácil estar na “arena”… Entendo bem de vergonha. Ter que se “colocar” nela envolve lidar com a realidade de que nem todos gostarão do que vão ver. Nem todos apoiarão ou aprovarão. Muitos responderão com aplausos, mas outros tantos, com reprovação, julgamento e invalidação. E na qualidade de seres que precisam de reconhecimento e aceitação, de pertencerem a algo maior, a dor de lidar com a não validação de quem se opõe é aterrorizante. Alimenta a vergonha na gente, às vezes sobre o que nem sabemos o quê, ou como nomear. E a “arena” põe luz sobre estas “salas fechadas” no universo da gente, como que nos jogasse no palco.
Que paradoxo. Pedimos tanto na vida por luz e, de repente, quanto, por escolha, podemos dar um passo à frente e chamá-la para nós, sob os holofotes, morremos de vergonha.
Vivi uma vida de vergonha intensa e de lido silencioso com ela. Vergonha de me posicionar, de ser insolente, de desafiar a alguém sem querer. Quando moça tinha vergonha do meu corpo e não era feliz com a minha aparência. Tinha vergonha de ser qualquer coisa que decepcionasse ao meu pai e a minha mãe. Uma necessidade de agradar tão gigantesca que me embasava neles e nos seus desejos, e não em mim, sem que eles nunca tivessem me pedido isso. Depois, no trabalho, vergonha de ser uma fraude e não superar as expectativas com o que eu tinha a oferecer. Então, frente a promoções, vivia a ambivalência de querer aquilo para mim, e achar que o melhor ainda seria não se colocar à prova e deixar a coisa confortável do jeito que estava.
Terminei um noivado próximo a data do casamento por motivos legítimos e a primeira sensação que tive, e a última também, além do alívio de ter decidido mudar meu caminho a tempo, foi de vergonha. Do que amigos, familiares e desconhecidos pensariam sobre. Depois, como mãe, vergonha de ser uma que cansa, que já teve uma exaustão ao ponto de desejar estapear os filhos, do fundo da alma, e que o controlou, e respirou fundo, administrando a tal vontade. Vergonha de ser muito feminina no ambiente executivo, delicada demais, e por não lidar muito bem com os gritos e a agressividade tão comuns no mercado no qual sempre atuei. Depois, vergonha por ter me acostumado com isso a ponto de virar uma profissional “dura nas quedas”. Vergonha de me preocupar com a minha aparência e por isso talvez significar futilidade ou superficialidade, quando essa nunca foi a questão, pois se tratava do lido com a minha baixa autoestima.
E na minha experiência de divórcio, a vergonha pelo que a minha decisão trazia para a vida dos meus filhos e para quem éramos nos grupos nos quais pertencíamos. O que, visto de cima, parecia um ato tão egotista, até para mim mesma, muitas vezes. E que me acuou nos corredores da escola, do clube, de um restaurante, da vida, em cada momento no qual precisei enfrentar alguém após a decisão que impactava a minha estrutura familiar de forma tão devastadora, e a cada indivíduo parte dela.
Aí tem a vergonha de mexer o cabelo para o lado e parecer vulgar, de usar roupas justas, curtas ou muito coloridas para uma mãe de “alguns” filhos, e da condição, primeiro de separada, e depois, de esposa de novo, na qual, algumas vezes, tive que assumir sentir ciúme do meu parceiro, depois de amadurecida por tantas relações e fins. E a vergonha de mudar de depiladora?
A vergonha é como um cão fiel que mora ao lado da gente. Acompanha cada ato, cada olhar e quiçá, pensamento. E romper esse ciclo natural, oriundo de quem somos versus o que queríamos ser, versus o que podemos parecer ser e não queremos, é um desafio que nos exige extrema vulnerabilidade, entrega e fé no que nos constitui.
Você deve estar se perguntando se é real uma mulher em pelo século XXI ter sentido tais vergonhas. Ora, ora… As vergonhas são sinuosas, silenciosas e venenosas. Não precisam ser coerentes, muito menos racionais. Basta pegar a gente “insegura” ou questionando alguma escolha da vida, para nos tomar pelas frestas das nossas vulnerabilidades.
Então peguemos essa tal de vergonha, que nos distancia de quem somos, e peçamos licença, a fim de nos encontrarmos. Estamos do outro lado do escudo…E não há oponente páreo a quem se determina a lutar para ganhar ou perder, quando reconhece a si mesma e se coloca em sua própria defesa. Não há vida que acabe em si mesma quando oferece, no enfrentamento da sua própria vergonha, a coragem para que outras desbravem o seu próprio caminho.
As histórias das mulheres do New Families não são só um ato de coragem e enfrentamento das mais variadas vergonhas. Estes relatos são sopros poderosos, ventos que abrem porteiras, que quebram vidraças de prédios luxuosos, que abrem caminho nos jardins da vida, dentro do coração de mulheres, mães de famílias de todos os tipos ou não mães, mas apenas mulheres. Como que sinalizando novas chances, novos tempos. Termos portas e janelas destrancadas é pressuposto para oxigenarmos nossa existência e o lugar onde optamos pousar e fazer lar. E quando faltar o ar, há de aparecer um testemunho de uma mulher dessas, de verdade, capaz de nos pegar pela mão, de nos abraçar sem perguntar nada e de nos encorajar a descer, degrau a degrau, até a nossa “arena” própria.
Coisas nos esperam lá, umas boas e outras nem tão boas. O fato é que ambas constituem a melhor jornada que podemos escolher fazer aqui. A da experimentação, do autoconhecimento e do enfrentamento de quem somos. Aquela que está pronta a nos receber para aprendermos e inspirarmos a outras no mesmo caminho. Pronta para nos propiciar tudo o que buscamos na vida, mas nunca de graça, já que nada é. Mas que se nega às conveniências, falsa moral, boas práticas e costumes, talvez porque estes não formam gente realmente feliz, autêntica e completa.
Acredito nas que rompem ciclos de expectativas, missões e funcionamentos de uma história que não é nossa.
Então, se vale dizer que, de verdade, o seu caminho é um só, e só seu, e que para vencê-lo haverá dragões, julgamentos, ausência de afeto e até o desencorajamento para seguir, fazendo-a desistir de quem realmente você é e do que acredita, sugiro que busque fortaleza e exemplo nas mulheres que estão lutando, lá embaixo. Que estão machucadas, que sangram, que por vezes sentem o peso das suas escolhas, mas, assim mesmo, ainda assim, não identificaram outro lugar que pudesse ser mais delas do que aquele, sob a luz. Essas, iluminam só por se proporem a descer e enfrentar, e a olhar para a arquibancada, avisando como é a dor da luta, no objetivo de ajudar, de constituir preparo para a próxima lutadora da vida que vem logo atrás.
Aplausos amorosos e emocionamos as que desceram até aqui embaixo, lugar de enfrentamento das vergonhas sim, mas de verdades, de amor, da conexão consigo e com amizades reais. Com seus filhos e com um arranjo familiar que realmente faça sentido. Com recomeços duros, mas necessários e surpreendentes. Dá trabalho, mas não tem vida melhor só por ser de verdade e por respeitar a nós mesmas. E nada pode ser mais valioso do que termos um salão cheio. Nessa “arena” populosa, de tantas que seremos, talvez os leões e dragões não sejam páreos, ou até, se neguem a aparecer…
Pois para enfrentar a violência das vergonhas é preciso muita coragem, até para eles:)
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