Há algum tempo vivia envergonhada e culpada. Minha vergonha se alimentava no vácuo entre o que eu era e o que eu desejava ser, de forma que eu conseguisse me constituir alguém que fosse agradável, validada, uma operária das melhores práticas.

Tinha um desejo genuíno pelos assuntos da moda, por exemplo. Desde pequena, mesmo “estrainha” pela minha aparência nada padrão, já que usava cabelos curtos e crespos enquanto os longos e lisos dominavam o “campinho”, gostava de ousar nas roupas com estilos inusitados e muita mistura. Lá atrás, já recebia feedbacks que vinham como “facões” a moldar a minha criatividade, a minha inovação na forma de me apresentar ao mundo. Eles vinham da minha comunidade e comunicavam a cultura na qual eu vivia e, possivelmente, você também.

Boazinha era bom. Roupa de princesa, recatada e encantadora, no cumprimento certo, era ótimo. Dizia muito sobre quem éramos e sobre as nossas intenções, mesmo em se tratando de meninas. Falar baixo, andar sem arrastar os pés, não misturar estampas, andar de cabelos presos e não dar opinião em frente aos adultos eram as regras ofertadas pela nossa cultura, assim como manter um portfólio de poucas aventuras, também. Tanto que nutria uma aversão a “ficar” com meninos, expressão da minha época, por soar agressivo à imagem de menina séria que seria bom eu passar, e que em tanto foi motivo de ansiedade, preocupação e “autogestão” para mim, para não dizer de um “autocontrole” demasiado. Então, na dúvida, namorava, o que me parecia mais recatado…

Pensar que coisas tão sutis tiveram o poder de moldar a mulher que vive aqui é assustador. Principalmente considerando que vivi neste “modus” por quase quarenta anos. Ainda tenho pesadelos acordada sobre a minha responsabilidade na educação dos meus filhos por conta dos efeitos que poderão ter os meus movimentos de mãe. De líder dessa casa no papel que me constitui plena de poderes e direitos, além de mais uma adulta de referência na vida deles, juntamente com os seus pais, só pelo fato de sermos mais velhos e por suposto, também os responsáveis pelo comboio.

O medo de pré construir os caminhos dos meus filhos com base no que me parece adequado, soa completamente inadequado para não dizer consternador para mim.

A culpa, lá atrás, não era exatamente de ninguém a minha volta. Nem dos meus pais, nem de quem veio a se relacionar comigo de alguma forma. Hoje também não é do modo como o mundo segue sendo “tocado”, com tanto ainda a fazer no que tange liberdade, autonomia, responsabilidade e respeito pelo outro. A culpa era da vergonha que sentia perante a cultura que nos cercava e, por vezes, ainda é. Essa que, na intenção de unir e caracterizar-nos como grupo, nos toliu a existência própria, singular, a nossa criatividade e a natural inovação que caminha com ela. Essa que nos distancia da gente. Que não permite que o novo chegue, que os sentimentos das pessoas sejam legitimados, e assim, libertos, podendo caminhar por jornadas ainda desconhecidas e que em tanto poderiam nos ser benéficas enquanto sociedade. Essa que intimida, tira o volume da voz, a profundidade do pensar e do sentir.

Muitos destes termos que trago aqui são da pesquisadora e educadora Brené Brown, não meus. Apenas usei-os para nomear meus velhos sentimentos, que talvez sejam “nossos”. Sinto que fiz o caminho da vergonha, e por muito tempo. Esse que traz consigo a culpa pelo que somos e que nos difere de quem tentamos nos tornar, gerando uma frustração incrível, uma sensação de fracasso violenta e então, a tal da culpa por simplesmente não nos bastarmos. Esse que nos causa culpa também, na direção contrária, por não vivermos quem somos de verdade. Esse, ambivalente. Que nos puxa para lá e para cá, alimentando ainda mais a vergonha sobre a nossa vulnerabilidade, ao invés de abraçá-la.

Está ok que tenhamos experienciado tanto tempo de solidão na gente. Que tenhamos nos sentido tão perdidas. Está justificado, digamos assim, pelo que somos convocadas, provocadas e impulsionadas a “sermos”, por aí afora. Ocorre que vejo um desconforto profundo no ar com essa situação. Vejo luz no fim do túnel. Em mim, quando me divorciei do pai dos meus filhos mais velhos movida pelo divórcio que já acontecia comigo mesma, e nessa travessia, me dar conta disso e fazer novas escolhas para o meu presente e futuro, para a relação com quem eu sou, e com os meus desejos mais genuínos. Quando converso com pessoas que urgem pela mudança em suas vidas, por conta de uma imensa desconecção com tudo e consigo. Com mulheres cansadas, esgotadas. Essas que sentem a dor do divórcio, da transformação daquilo que nelas foi plantado pelo cultura, com expectativa e como certo, e que, então, desejam, a partir da sua própria disrupção e consciência, não mais se divorciarem do que é mais importante na vida. Para que ele, o mau divórcio, não mais aconteça. Esse que causa tanta dor e desconforto a tantos, tamanho o desespero do enfrentamento da desconexão em si, mas que chega como uma consequência tantas vezes necessária, trazendo essa realidade cruel à superfície. A do desencontro em nós. Fruto das nossas escolhas diárias sobre a nossa apresentação e “lido” com as vulnerabilidades que são parte de quem somos.  

Que possamos começar com um casamento sincero em nós mesmas. Com o real e natural que vive em nós. Com o que queremos apresentar nas nossas vestes, na escolha do nosso drink, do que comemos, onde trabalhamos, e que mãe e mulher desejamos ser na vida. Com o que falamos, casando responsavelmente os nossos atos com os nossos valores, com coerência. E assim, na ausência do divórcio na gente, não precisar se divorciar de nada mais, nem de ninguém que realmente seja importante para a nossa jornada.

Exceto quando ele seja um bom divórcio, daqueles para os quais seria bom estarmos preparadas, quando vivemos na arena, lutando pela nossa própria história e pelo bem dela. Do tipo que encerra ciclos necessários e neste caminho, são normalizados como movimentos da vida. O que vem da escolha que “escolhe” por nós mesmas, pelo que é melhor para seguirmos em frente, “não avariadas”, nem violentadas. Não, sem pedaços nossos. Mas íntegras. Preenchidas do que nos constitui, completas e “conhecidas”, motivadas e sabedoras do destino que queremos para nós.

É um bom remédio para o divórcio, este. Um bom remédio… Ou seguiremos nos divorciando do jeito que dói.

Deu, né?

Aqui deu. Trabalhando para isso. E considerando que boas meninas se divorciam, que as disrupções que venham pela frente sejam daquelas do bem. Que abrem portas, janelas iluminadas, novos degraus de subida, construções que nos aproximem da gente. Que nos permitam sentir a felicidade do caminho.

Neste caso, “boas meninas” terão a jornada e o final feliz que merecem.

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