O bem das pessoas, a evolução da humanidade, a superação da pandemia e o estabelecimento de relações de afeto reais, profundas e sadias partem do autocuidado. Está tudo neste movimento. Na dedicação em ouvir-se, acolher-se, amar-se, autoconhecer-se, preservar-se. Quando não nos violamos com exigências externas como um ato de generosidade à nossa constituição particular, não estamos cuidando só de dentro, mas de fora. Quando cuidamos da nossa saúde de forma responsável e, neste ato, resolvendo “parte” do problema com a nossa “parte bem feita”, estamos sendo solidários. Quando entendemos as nossas falhas como parte do nosso processo de desenvolvimento, e assim, tê-las como uma benção necessária, parte da jornada, entendemos também e melhor, a travessia de aprendizado do outro. Quando compreendemos a sensação de felicidade, o lugar no qual ela nos toca e “como”, o que nos faz “prontos” para participar do todo sem sequestrar a nada nem a ninguém, sem roubar, contribuímos no todo com afeto que soma.

O mundo irá acabar se não aprendermos logo o caminho do cuidado da gente, esse que nos preenche de nós mesmos. Irá sucumbir se não trabalharmos na direção de nos afeiçoarmos no que somos, com todas as nossas demandas, exigências, fracassos e habilidades. Se não nos amarmos e honrarmos. Se não transbordarmos do ser imperfeito e presente que somos. Pois só o que transborda tem realmente o que oferecer sem cobrança de juros ou qualquer expectativa de receber algo em troca, o que mudaria a dinâmica da nossa era, ou falando no “micro sistema”, da nossa comunidade.

Em tempos de pandemia tem me entristecido a falta de amor próprio, essa que trouxe à nossa realidade uma escassez profunda de amor ao mundo. Já diz aquela máxima que quem não tem ele vivo em si, amor orgânico e em ação, não tem como amar ao outro. Não tem o que oferecer, e então, busca sequestrar um pedaço de alguém, ou ser sequestrado na sede por preencher suas “lacunas” esvaziadas de afetividade por “coisa qualquer” nos oferecida. Vivendo relações de divisão do pouco que se tem, de troca, de escassez, e não de soma, oferecimento gratuito e abundância.

Isso serve para mim e para você. Não é uma acusação, mas algo como “auto responsabilizar-se”. Serve para a nossa relação com os nossos  filhos, com o pai deles, com o parceiro romântico que escolhemos, com uma amiga, com um irmão, com uma irmã, com os nossos pais. Esse abandono da gente mesma e essa falta de amor em si e por si reflete no que estamos fazendo com os nossos “vizinhos”, conterrâneos, com desconhecidos, com outros seres humanos. O descuido que temos conosco viola o cuidado ao outro, e de uma forma muito ampla. Reflete a violência com a qual viemos enfrentando a vida, os afetos, as relações, mas principalmente a nós mesmos.

Quando nos anulamos e invalidamos nossos oferecimentos, perdemos a fala genuína, maquiamos o sentir, filtramos a realidade, afrontamos a nossa natureza. E a violência disso tudo é tão gigantesca, de tanto descuido com nós mesmos, que os “protocolos” da travessia de uma pandemia soam chatos e desnecessários. São diminuídos a nada… A saudade dos amigos, das festas, dos ajuntamentos, se fazem “anestesia” importante na negação das dores mais profundas que temos e, em ato contínuo, justificam a violência ofertada ao outro pelo nosso descuido. A máscara, a higiene das mãos e a restrição da nossa circulação no ambiente social são só materializações do cuidado que negamos a nós mesmos e que é tão necessário à vida em particular e em comunidade.    

O negacionismo não vem só de alguns dos nossos lideres políticos. Ele vive na gente. Quando nos negamos em receber de braços abertos quem somos, quando seguimos na busca de padronizar nossa existência, nossa apresentação, discurso, aparência, e o nosso comportamento, quando seguimos a esconder nossas dores e tristezas, e a controlar nossos afetos e suas ofertas. Da negação vem o caos, vem a morte e o fim.

Melhor olharmos para dentro. Melhor cuidarmos de quem somos. Só assim doaremos ao mundo realmente “de graça” o nosso oferecimento mais humano, afetivo, profissional e fraterno. Só assim bons resultados serão apenas consequências de uma ação de abundância. Só assim daremos sem esperar de volta. Só assim somaremos. Só assim, cuidaremos do outro.

Minha filha faz três anos este mês, segundo aniversário em pandemia. E quer saber? Feliz por tê-la, por podermos estar em casa, com saúde e juntas. Por estar aqui para ela. É a melhor celebração da vida que eu posso oferecer à nossa menina <3

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