Veio da soma da minha genética com os brindes alegres que vivenciei em família na minha infância e de lá para cá. Assistia meus pais, tios, avós e seus amigos felizes à volta da mesa, com suas taças de preferência, sempre rindo e comemorando datas festivas, acontecimentos que pediam um “viva”, ou mesmo um brinde aos próprios eventuais encontros.

A minha avó tinha como hábito degustar um licor de butiá como aperitivo do almoço, em um momento quase de reza, de entrega pura ao sabor, ao relaxamento, à maturidade, ao presente, pouco antes de sentar-se para o deleite que era a mesa farta das refeições servidas na sua casa no interior, em Palmares do Sul.

Minha tia “alegre” chegava de São Paulo, onde mora, e pedia a sua taça “estupidamente gelada” antes mesmo de se acomodar na cadeira. Contava entusiasmada as aventuras dela pelo mundo artístico do cinema com o copo cheio, e para quem acompanhava a interpretação das suas histórias, a coisa toda era sedutora, encantadora e divertida ao mesmo tempo, digno de comemoração.

Lembro de desejar aquilo tudo, o pacote completo. Os encontros, as histórias vividas corajosamente, as taças e seus brindes. Tenho várias jornadas disruptivas na história da minha família não só nos seus cantos, mas no meio da sala dela, e assisti-las, harmonizadas com taças suculentas, era de um prazer tamanho que tudo o que eu desejava era um dia fazer parte daquilo.

Então chegou a minha vez. Dona de novas histórias e empreitadas exigentes, fui convidada a me “aprochegar” com a minha taça, e descobri que os encontros que eu idealizava na infância não eram de todo felizes. Eram melhores ainda… Às voltas com a minha taça passei a perceber que nas mesas da vida os “meus” dividiam angústias, dores, insucessos e perdas, na mesmo proporção em que brindavam ganhos, vitórias, boas ideias e aniversários. As taças uniam de fato do velho ao novo, do funcional ao disfuncional, do belo ao mais duro.

Logo mais ficou claro também que não precisavam ser encontros. Do fundo das minhas memórias de criança lembrei que a minha avó bebia seu licor sozinha. Que vez ou outra minha mãe enchia a taça de vinho branco e a degustava sozinha na cozinha, enquanto montava o jantar das três filhas e do marido. Que pessoas bebiam suas taças, do que for, na própria companhia e de seus pensamentos. Porque afinal ela pedia muitos, mas também caía bem a beça na solidão ou na solitude, que seja… Na auto conexão, no relaxamento do final do dia, composto com boa música ou mesmo com a bagunça das crianças à volta, com choro, com oração ou com satisfação.

Não exigente, virou companhia para os bons e os maus. Para os dias reluzentes e para aqueles opacos pelo cansaço e pelos mergulhos mais profundos… Parceira de pandemia, criou comigo bons momentos a sós, outros com o marido, outros com aquela amiga que nunca deixou de visitar, com a mãe, com o pai, com a sogra e o sogro… Até no pátio com a vizinha ele se fez presente. O fato é que uma boa taça se apresentou uma boa amiga. Nem todos os dias, mas presente quando necessário aquele “relax”, aquele ombro, aquela “encostada” sútil na busca pelo amparo, naquele momento de descontração ou naquele outro simplesmente de stress. Além daquele que comemora por dentro qualquer conquista que seja, mesmo a de vencer mais um dia, de escrever um texto bom ou por sentir que a energia da casa vibra alto em determinada noite, e só…

O “experienciar” a reconstrução da própria história afetiva, de outras tantas do trajeto profissional, viver uma pandemia, a agonia das incertezas, a maternidade na sua infinitude, o trabalho em home office, o casamento reinventado a cada amanhecer, e tudo isso de portas fechadas, a gente vem dando conta, não há como negar… Estão todos aqui, pedindo janta e ajuda para os temas, para a nova “empresa de bolos”,para acompanhar no passeio de bicicleta em frente de casa, ou para correr atrás dos gatinhos da vizinhança (e aqui falo de bichos:) Ou seja, todos vivos, com demandas de criança e com saúde. Mas está exigente, e neste momento, entre as lembranças da minha infâncias em volta da mesa e da minha avó na varanda com a sua taça de licor, me dei conta de que essa é deliberadamente uma grande paixão minha, de uma vida toda. Ao ponto de sonhar com o dia no qual subirei o Vale dos Vinhedos gaúcho, com o meu marido e os meus três filhos, para deliciosos dias de degustação de vinhos embaixo das árvores e jantares em família com brindes sutilmente barulhentos dentre a minha família grande…

Então, é isso. Harmonizei a vida a um bom vinho… tinto ou rosè, depende do “mood”. O fato é que ando vivendo um caso de amor com a minha taça. Aquela das minhas memórias mais afetivas e que desejo dividir com quem mais amo. A começar por mim, que já não preciso de companhia para brindar.

Sou só eu?

Comentários

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *



NEW FAMILIES