Atravessava o Estado com o meu marido, de volta da nossa fuga. Uma reta longa cercada de campos, de lagos, de gado, de verde. Amo essa estrada mais que o destino dela. A fazemos juntos desde que nos conhecemos e ela sempre representou aquela “escapada” só nossa, ao ponto de não fazer nenhuma questão de qualquer outra companhia além de nós dois, “inteirinhos” e sozinhos na empreitada. Perdão aos amigos e parentes que já nos acompanharam, mas prefiro sempre a verdade…
Esse é o sentimento que tenho quando a atravesso. De profunda conexão comigo, com os pensamentos que perambulam não minha cabeça, com a beleza da natureza, com a água quente do mate que escorrega pela minha garganta. Egoísta, tenho o cenário e o tempo todo para mim nessa viagem longa.
Viajamos parte em silêncio, curtindo um mergulho íntimo, outra parte, falando daquilo que o dia a dia em família esmaga com um trator, daquilo que não dá tempo, para o qual não existe janela. Afinal, tem preparo para mergulhar, principalmente a dois. Tem contexto. Ninguém sai se desnudando sem se sentir seguro, amparado e com tempo para que isso tudo se constitua.
No caminho passamos por uma tenda simples de madeira, do tipo “parada de ônibus” construída a mão. Uma senhora vendia pão caseiro e só. O dia era chuvoso e frio, e o acostamento estreito tornava a parada de qualquer carro quase que improvável, além do fato de que ali só tinha pão caseiro de alguém desconhecido, em um cenário receoso de pandemia e suas urgências sanitárias. Pensei nela, naquela mulher e na sua solidão ali. Necessária, já que pautada no possível, na necessidade de recursos para a sua família e na ausência de alternativa que não fosse a fé em vender alguma coisa. Em segundos imaginei sua casa simples e sua demanda doméstica, materna e de mulher. Podia sentir a sua luta. Foi mais forte que eu. Quem já lutou sente o toque da luta da outra. Sente a dor e o ressecamento das mãos geladas e o aperto da angústia no peito de quem precisa dar conta…
Melancólica e curiosa vislumbrei logo à frente uma árvore sozinha no campo. Enquanto a maioria se via plantada em grupos, aquela que me chamou a atenção estava sozinha e seca. Metros à frente havia outra solitária, só que de copa cheia, abundante, verde de dar gosto. Quase paramos para fotografá-la, mas os recuos estreitos que comentei e a sutileza da cobertura de morros que cercavam o nosso caminho nos impediam de achar o melhor ponto para capturar a sua força inteira, mesmo que só. Seguimos o nosso trajeto e percebemos uma árvore aqui, outra ali, sozinhas. Separadas dos grupos seguros e arborizados que desenhavam o campo.
Me vi naquela solidão e enfrentamento e imaginei o que ela pudesse sentir ali… Quem nunca esteve sozinha para enfrentar os ventos, as tempestades, a ardência do sol forte e as estações, os tempos que mudam? Como parecia mais fácil para as que estavam em grupo, fazendo frente ao que estivesse por vir e guardando histórias nas quais, uma ou outra foram as grandes heroínas das batalhas vividas juntas? E ao olhar as solitárias, se perguntar como ela foi parar ali, isolada, sem amparo, ajuda ou companhia?
Ela não poderia caminhar até as outras nem as outras poderiam abraçá-la ao grupo. As raízes impediriam tal movimento generoso. Então pensei no quanto ela precisaria dar conta, do jeito possível, de atravessar a sua jornada com as condições impostas pela natureza à sua volta e pela sua própria. Uma metáfora interessante esboçando o quanto atravessamos nossos túneis sós. O quanto, por mais que sejamos “comunidade”, temos nossas próprias batalhas e o peso intransferível das nossas mochilas ou “folhas”, para ficar no contexto. E a presença da nossa natureza, nossa leveza ou rigidez, nossa cor, nossa copa… Nossa escassez e as nossas abundâncias. Nosso próprio pedaço de terra, nosso início, nosso meio e os nossos fins e recomeços.
Assim me parecem ser os momentos de lido com o que é nosso, com o que é do cenário, com o que é fruto do que é da natureza do outro, ou ainda, com as tempestades que a vida manda e pelas quais escolhemos passar porque são nossas. Perdemos folhas, mudamos de cor, nos machucamos e, em determinado momento vem a “primavera” nas nossas vidas e tudo parece revelar uma oportunidade de recomeçarmos belas, floridas, abundantes, mesmo com os nossos troncos marcados pelo tempo e seus ventos. De repente nossa copa está cheia. E mesmo sozinhas, alguém para o nos olha admirado pelo que conseguimos ser no contexto em que nos encontramos, por mais distinto e exigente que ele possa se apresentar. E ali, constituímos nosso próprio valor, individual, íntimo, desnudo, sem nada ou ninguém para nos esconder e ao que realmente somos. Prontas para sermos capturadas por uma foto… Por alguém que simplesmente tocamos.
No mais, me gratifiquei com o fato de podermos caminhar, movimentar nossa raiz de onde estivermos para o que desejarmos recomeçar. Para onde acharmos que podemos cuidar da nossa copa, enfrentarmos aquilo que ainda não conhecemos, o que já conhecemos e agora lidamos de forma diferente, e darmos nossos frutos. E aquelas árvores mostraram que a gente pode…
A foto, aquela que não tirei? Ficou marcada no meu tronco. Aquele que irá comigo para onde eu for, até que as minhas folhas caiam de vez, minha força e as minhas histórias virem adubo para os que seguem e se sentirem tocados, e a minha jornada aqui se acabe, enfim.
Tipo isso, pensava eu aqui, cá com as minhas folhas…
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