Ouvia no carro, na longa viagem de volta de Santa Maria para Porto Alegre, uma playlist do Spotify escolhida aleatoriamente. Dizia no título convidativo: “jantar relax”. A ideia me cativou, apesar de não ter nada a ver com a nossa empreitada do momento, mas por ter tudo a ver com o meu “mood” pessoal, relaxado, oriundo de um final de semana bom, de uma saída romântica com o meu marido e com algumas exigências maternas as quais atravessei com a calma da maturidade. Então, valeu a escolha por ela. Entreguei meus ouvidos, corpo e alma àquela sequência de músicas harmonizada com um chimarrão quente e a vista bonita do nosso caminho para casa…
Elas eram completamente desligadas umas das outras. Libertas. Não eram dos mesmos artistas nem seguiam uma mesma proposta de ritmo. Nem mesmo seriam relaxantes, se este também não fosse o humor do ouvinte. Elas surpreendiam pela sua sequência heterogenia de um gênero musical “misto”, eclético e que me agradava. A viagem fluía e eu me via com um friozinho na barriga a cada fim de música, na expectativa do que estaria por vir. Será que eu gostaria da próxima ou simplesmente torceria para que ela acabasse em uma nova chance de ser completamente atendida nos meus anseios por encantamento e relaxamento, em uma próxima? Pelo que talvez me fosse familiar?
Pois, vez ou outra, me vi sorrindo, daqueles sorrisos de canto de boca, por conta do prazer inesperado propiciado pela que chegava. Em outras, entediada, estudando o convite arrogante de pular para a próxima no poder de descarte fácil ofertado pelos “touchs digitais”.
Como a playlist musical e sua proposta de “mood”, prazer e encantamento, carregada por uma identidade com um nome qualquer, o amor pressupõe uma relação de tons, sons e movimentos heterogêneos, muitas vezes desconectados entre si ou que não conectam com a gente eventualmente, aqui e ali. O bom e o não tão bom permeiam o mesmo oferecimento, o mesmo ser e a sua “playlist” trazida na bagagem. Aquilo que a gente ama e aquilo que a gente simplesmente gostaria de pular, tudo junto. Aquilo que nos faz morrer de admiração e paixão, e aquilo que a gente sente dificuldade de reconhecer, de gostar até, o que seria justo “administrar” por conta de todo o resto de bom que o cerca. Ou ainda, na dificuldade de tolerar o que açoita a nossa verdade.
Só que quando amei a playlist, e a comparei com as duas ou três que montei pelas minhas mãos e gosto, me dei conta do quanto o que me surpreende, me traz o novo, me desafia com um olhar diferente, um outro polo, um outro ritmo e vários misturados, me tirando do lugar, me fazendo experimentar o desconhecido ou a minha capacidade de mergulhar em um sabor distinto e além do meu paladar e rebolado, me faz crescer na vida e ampliar as minhas possibilidades de prazer, de amadurecimento e de respeito ao que é diferente. De tolerância e até admiração pelo que eu não sou, pelo que eu não entendo ou pelo que eu não conheço por falta de experimentação. Ou até, no valor do aprendizado quanto a possibilidade real de viver com o que eu não gosto ou não concordo, simplesmente porque o que não me atende e aos meus contornos também existe, também é fé de alguém ou de alguns, e por isso, é legítimo e uma oportunidade de flexibilização ou reforço do que mais acredito e amo.
De imediato lembro de uma história. Tenho um tênis “All Star” todo desbotado que eu amo. Atravessei meu divórcio e minha mudança com ele. Conheci meu marido, e na nossa primeira viagem, o levei como protagonista do nosso final de semana. De dia seria ele, escolha inegociável. À noite, o salto alto, o que vim a saber no tempo que o meu marido adora. Mais que o “All Star”, bem mais. Que na verdade, no tempo, ele me confidenciou odiar.
Bem, em mim vive o meu tênis predileto. Assim como vivem os meus filhos, que saíram comigo da reestruturação da nossa família. Todos, e mais um monte de coisas vivem em mim. Umas que ele ama, umas que o desafia, outras que aprendeu a tolerar. E é disso que se trata essa reflexão.
Como na playlist, venho amando mais o amor que me desafia a atravessar aquilo que foge da minha lista de “prediletos”. Sem pular ou descartar. Minhas possibilidades de prazer vêm se multiplicando na música e no amor. Ao ponto do tal do “jantar relax” simplesmente me servir inteira, da entrada à sobremesa, em um momento qualquer, e me encher de desejo pelo próximo estímulo. E no amor não tem sido diferente.
Tomara que a próxima oferta não seja nada que eu já conheça… será? Se for, ou eu amarei, ou eu atravessarei… Sem pular:)
Cada vez mais seduzida por isso.
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