A pandemia surpreendeu e nos arrebatou com um tanto de situações novas e com a demanda também de novos lidos, tanto dentro de casa, quanto fora, no nosso trato com o mundo. Isso a gente vem debatendo um monte por todo o lugar…
Está na televisão, nos programas da CNN, na ficção, no jornal do “bom dia” ao da madrugada, nos documentários que apontam a atual realidade e seus efeitos já conhecidos, e nos ainda desconhecidos.
Está nas redes sociais, onde todo mundo se permite colocar a sua opinião, naquele episódio que presenciamos na nossa comunidade ou dentro da nossa própria família, e até naquele que tocou a gente na nossa humanidade pela empatia com quem vive situações mais exigentes do que as que estamos acostumados.
Está nos artigos publicados por toda a parte, nos encontros que começaram a superar a escassez, nos grupos de WhatsApp…
Mas tem sutilezas importantes que nos foram colocadas abruptamente e que demandaram, de repente, de reflexões e ações nada suscetíveis a devaneios. Pedem experimento, mas com responsabilidade. E aqui foi no “soco de realidade” da minha missão de criar mulheres, já que tenho duas e uma delas me parece voar para essa condição na vida, que me deparei com um trabalho tão duro quanto cruel.
Minha menina mais velha virou mulher na pandemia. Aqueles shortinhos que costumava comprar ano a ano, em número maior, já não vestem uma menina. Nem as roupas de banho, nem as tiaras de unicórnio. Sem mais nem menos passei a ter o meu guarda-roupa assaltado, algumas das minhas calças compartilhadas, minhas blusas simplesmente caindo bem naquele corpinho jovem, e os meus calçados, perfeitamente adequados e divisíveis por duas em uma quase perfeita sociedade.
Me assustei ao ver como as coisas caem nela, como a beleza e os movimentos de mulher começaram a aparecer, como o blush e o rímel que ela passava nos olhos, de repente ornamentavam sua face com a delicadeza das “boas vindas”, do tipo “vim para ficar”. Tudo parecendo se encaixar, indo para o seu lugar. Como que se a pele de uma mulher começasse a vesti-la, aderindo a sua antiga superfície de menina, e se eu não tivesse aqui para presenciar, eu diria que foi tudo fruto da magia de uma bruxa ladra de crianças e competente nessa empreitada de levar a infância embora.
No lugar da minha menina tem uma mulher, e me vi na necessidade, na qualidade de mulher a mais tempo, de orienta-la sobre os privilégios, as doçuras e os riscos de ser uma hoje.
Não estamos no Paquistão ou no Afeganistão, mas vivemos em um mundo no qual ser mulher ainda significa lutar batalhas diárias que garantam o nosso direito de apresentação pessoal livre, de respeito sobre os nossos movimentos, de edificações autônomas nas diversas cenas da vida, de escolha, da preservação física e emocional do nosso gênero, de proteção contra a violência. Ainda somos assediadas em tantos espaços que pensar que essa é a jornada da minha Joana, já tão próxima como uma locomotiva em alta velocidade, me tirou o sono de um dia para o outro.
Aquele shortinho curto que veste a minha menina mulher ainda é uma “arma carregada”. Ainda pressupõe perigo, ainda pode gerar uma guerra aberta ou íntima. E como dizer a ela que pode “ser”, vestir e falar tudo o que quiser, mas que as consequências na sociedade na qual vivemos podem ser abusivas, traumáticas e violentas? Como falar de liberdade feminina com ela sem lembrá-la, nem que seja nas entrelinhas, dos riscos dolorosos de ser livre?
As mulheres mais desbravadoras da nossa história sofreram os piores tipos de violência em prol de suas causas… Criei um projeto que ampara mulheres em transformação pela dor dilacerante de atravessar algumas delas sob a pele feminina e tudo o que a desprotege. A moral, o controle e os abusos de uma sociedade patriarcal. Que muda a passos de tartaruga quando presenciamos o que ocorre com muitas de nós no outro lado do mundo, mas ainda assim, no nosso mundo. E eu crio meninas…
Então sentei com ela e entre o esboço profundo de felicidade por representar o gênero feminino nessa vida, por ser mulher, e os fatos desafiadores que ainda vivemos nessa condição, e que inclui o shortinho aquele que compramos há doze anos juntas, naveguei nos desafios que são ainda tão nossos. E tive medo por ela. Simplesmente porque mães não querem ver os filhos sofrerem e eu confesso: menos ainda as filhas mulheres, já que o mundo é muito mais exigente com elas.
Pois sei do que estou falando e você que me lê também sabe o quanto pode ser doloroso o exercício da liberdade no nosso lugar. E em uma hora dessas só posso me lembrar das lutas que luto e das que presencio todos os dias e me colocar firme, junto, dentro e ao lado dela, para que não se sinta sozinha nessa jornada jamais. E mesmo sabendo que algumas morrem de todas as formas possíveis nessa travessia, ainda assim, não trocaria essa armadura por nada. Nem a minha, nem a de Joana e Antonella, minhas mulheres mais amadas do meu mundo.
Me resta torcer, seguir vivendo o feminino e exercitando a minha resistência ao que fere o nosso direito. Orar e acompanhar as “minhas” de perto. Afinal, aqui, não somos poucas… Somos três. E se tenho como missão não deixar mais mulheres desamparadas nas suas jornadas, sejam elas quais forem, não será com as minhas meninas que irei esmorecer. Então eu vou com medo mesmo:)
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