Estes últimos dez dias foram desafiadores. Os últimos tempos tem sido, e sei que é geral. O retorno gradativo, mas intenso, pós pandemia, nos lançou da panela de pressão do confinamento para um lugar estranho, árido, atrapalhado ainda, sem chão, sem “pai nem mãe”. É como me sinto às vezes… Você não sente assim?

Não se trata da ausência real do pai e da mãe. Falo da sensação de estar começando a vida toda do zero, mergulhada na ignorância sobre o presente e o futuro, sobre o que se passa com as pessoas após tudo isso, sobre as farpas na gente que ainda não descobrimos, sobre valores que urgem serem redescobertos e colocados como luz a iluminar as salas das nossas casas… Desde o olhar e a percepção sobre as coisas, que já não é a mesma, até as atividades da gente de fato, do dia a dia, que passamos a questionar. Tudo isso sem referências anteriores razoáveis, já que o passado não parece fazer sentido agora ou ser capaz de orientar perspectivas reais de futuro. Uma sensação de abandono no mundo.

Triste? Talvez. Prefiro desafiador, uma oportunidade evolutiva, digamos assim…

Ninguém sabe o que vai acontecer a partir disso tudo. Então tendências, conceitos, definições que até então valiam, parecem sumir ao vento. Como será a formação dos nossos filhos? O que se comerá? Teremos netos? Teremos água? Existirão “casamentos”? E o dinheiro, se ganhará como? Por qual caminho devemos caminhar? Quantas serão as viroses e mazelas que ainda nos arrebatarão? E o corpo da gente, seguirá ainda mais padrões, ou sairemos dessa dinâmica para um caminho autêntico e reconhecido como belo por isso?

Meu trabalho, a divisão em compartimentos das minhas atividades e projetos, e a minha rotina mudaram “de fato” este ano. Passaram a me demandar ferramentais, tempo e dedicação distintos do que eu estava acostumada ou para os quais me preparei durante a vida. Ou idealizei. A me retornar com ganhos financeiros diferentes, e em novos modelos de trabalho. Mas até aqui tudo bem, sou dessas que usam e abusam dos novos formatos e me sinto curiosa frente a novas possibilidades, então está bom.  

Minha maternidade também mudou. Entrei em uma pandemia com três crianças e saí com uma, e mais dois pré-adolescentes. Ser mãe de filhos em fases diferentes também é uma grande mudança, que me exigiu revisões, recomeços, mas fui percebendo que este é um “drive” que está na mãe, em algum lugar da gente, e que conforme a gente vai andando na maternidade e adquirindo maturidade, nos tornamos capazes de desenvolver o “passo a passo” dessa evolução materna de forma muito particular, o que é bonito. Então está bom também que se dê assim.

A minha relação afetiva romântica sofreu transformações para entrar em casa e confinar-se, e agora, para sair. Por estarmos nos experimentando em tantas cenas novas, natural que no casamento não fosse diferente. Andamos mais criativos, mais profundos, mais íntimos. O confinamento nos trouxe isso com seus ônus e bônus, e para mim, mais bônus que ônus, já que busco e gosto de intimidade. Então andamos reaprendendo, o que acho que também é algo inerente das relações e que faz tudo parecer no lugar de alguma forma.

Só que outro dia ouvi um podcast que acolheu um desconforto profundo meu quanto à forma como venho lidando comigo mesma e com a vida na “onda” que o mundo surfa agora. Talvez sirva para você.

Logo eu, que sou dessas que discordam e escrevem sobre. Embarquei no comportamento aquele “sintético”, que abstrai o que é “orgânico” na vida. Tudo o que é vivo é, mas por algum motivo, entendi razoável seguir a vida sendo o “maior carrasco de mim mesma” e de quem eu amo, exigindo resiliência, produtividade, volta por cima, saúde, corpo em forma, autocuidado, daquele que aparece na gente e que apresentamos aos outros. Meu corpo, meu trabalho, minha escrita e a minha maternidade passaram a constituir exigências contra mim, e não a meu favor, de forma sutil… Aqui e ali.

Cobranças de altas performances recorreram sobre os meus dias, desde a leitura de mais livros, a mais tempo de corrida. Da intensão de estabelecer amizade com os meus filhos, a intolerância eventual às mudanças de comportamento deles que os faziam seres de “poucos amigos”. Do desejo de harmonia constante, à incapacidade de lidar em paz com dias em preto e branco. Todos estes, comportamentos de uma vida sintética, que só tolera a felicidade medida por momentos e que diminui os problemas e os conflitos colocando-os sob controle… Aquele que a gente não tem. Robotizada, matemática, na qual tudo dá certo e dois mais dois são quatro. Produtiva, em cada minuto. De borracha, de plástico, boneca.

Na intensão de mitigar tudo o que é orgânico, sofri com as exigências de tolerar a doença na hora dela, a tristeza, por estar fora da forma na qual me condicionei por anos, de dar conta dos conflitos com os meus filhos, dos dias ruins do meu casamento…

Pois essa semana minha filha menor pegou uma virose violenta e passamos algum tempo no hospital, que logo virou uma semana. Perdi o dia de texto do New Families. O que é vivo não está sob controle afinal, e o vírus resolveu que a hora era agora sem olhar o calendário. Eu, que não previ a doença em uma bola de cristal, também não preparei a crônica com antecedência. Logo a nossa quarta-feira de texto da semana! Pois mexida pelo podcast, pelo meu processo de autoconhecimento, sempre em andamento, e pelo meu frequente desconforto frente à falta de vida real na vida, o que tanto tem levado a mim e a tanta gente ao adoecimento, olhei no olho do meu umbigo.

Foi então que passei as últimas vinte e quatro horas dos últimos dez dias vivendo a escolha consciente de me humanizar. Venho buscando isso há anos, desde o início do New Families, desde o recomeço da minha vida. Mas não é fácil desvencilhar-se das teias que nos envolvem no dia a dia, inspiradas na nossa constituição pessoal e afetiva, assim como na sociedade na qual vivemos. Desse emaranhado tento me soltar em um trabalho de formiguinha, de mulher. E nessa semana estranha, acelerei. Coisas que aprendemos nas crises…

O texto está saindo agora, atrasado, enquanto massageio o abdômen da minha bebê, e parece, ao que tudo indica, que conseguirei terminar… O meu também dói, pois a virose pegou a mãe, que não é de ferro e não controla nada mesmo.

 A gente é o que a gente come. Feita do que se alimenta, tanto ao corpo quanto à alma. Então, no desejo de surfar ondas de verdade, salgadas, que eventualmente vão me derrubar, mas que em muitas outras irão me fazer sentir viva e em movimento, doce pelo aconchego do que toca, de verdade, escolho hoje pelo orgânico. Por aquilo que nasce e morre. Que adoece. Que engorda e emagrece. Que ama e repudia. Que envelhece. Que se atrapalha. Que se separa. Que fica. Que conflita e faz as pazes. Que pula uma semana sem texto…

É mais real. E por incrível que pareça, mais leve também.

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