Uma amiga me contou desse aplicativo. Parece que com ele instalado no telefone da gente e triangulado com aquele outro que queremos “controlar”, podemos ouvir conversas, saber cada movimento do vivente no seu smartphone, tempo despendido em cada rede social, cada assunto e cada pessoa. À primeira vista soa um tanto sedutor para aqueles que possuem tendências dominadoras e necessidade de controle, e até para quem se considera alguém que leva a privacidade do outro numa boa, já que a proposta convida ao acesso livre e cheio de justificativas ditas “plausíveis”, como a construção da confiança, ainda em desenvolvimento, ou por “cuidado”, proteção. Mas vou confessar que me arrepiei. A primeira pergunta que me veio foi: como se criou filhos e se estabeleceu relações de confiança antes disso? Muita gente morreu pelo infortúnio da privacidade?
Quando eu era criança e adolescente vivia cheia de “segredinhos”. O segredo me parece fruto de um ensaio à liberdade, sabe? Como se antes de amadurecer passássemos pela experiência dele, mantendo aquilo que não está pronto para nascer da nossa personalidade e história pela falta de coragem, de atitude, pelo medo da não aceitação ou validação dos outros, ou ainda, pela simples falta de lido, de desenvoltura para “saias ainda justas” na gente, ficando guardado só para nós ou para aqueles poucos dispostos a compactuar conosco. Matar uma aula, namorar escondido, dizer que estava em uma amiga e na verdade estar na casa de um garoto, esconder uma paixão instalada atrás da deliberada negação e medo da rejeição, enganar a si mesma burlando uma dieta… Eu diria até aquele receio, cria da moral, que nos avisa que podemos ter passado dos limites ou que relação parental qualquer precisaria dar conta desses cantinhos escuros da história que não sabemos como contar. Quanta coisa gostosa de manter sob a nossa única e exclusiva custódia…
Tanta coisa que eu não estava pronta para dividir com a minha mãe, por exemplo, e que precisei de tempo, de amadurecimento da ideia de que não a perderia, ou ao seu afeto, por experimentar a vida à minha forma, mesmo que eventualmente a opinião dela fosse diferente, e por isso, com poder de veto. Tantos tropeços pelos quais precisei cair, levantar e aprender a lidar, pela liberdade de serem meus e ter a oportunidade de vivenciá-los e dar conta deles sem a intervenção de quem tiraria a minha possibilidade de crescer. Passagens que, por se darem no meu mundo, e muitas vezes à margem dos que eu amo, me protegeram daquilo que era medo deles, da história deles, das limitações deles e não da minha. E pensando nisso, não consegui imaginar a instalação do “APP” na relação que desejo ter com a minha filha, sem dar a ela a chance de crescer com os seus “segredinhos”, com aquilo que eventualmente não chega em mim. Sadio, eu acho, já que talvez eu realmente não compreenda as coisas da mesma forma de quem está separada de mim por uma geração, apesar de ligada pelo tanto de amor e senso de responsabilidade que nutro na relação com ela.
Estar perto de quem amamos sem invadir as fronteiras de cada um exige trabalho dentro e fora, me parece. Do lado de fora a relação exige pactos de confiança e a coragem de experienciar a realidade que não pode ou não deveria ser moldada. Essa que não pode ser “evitada”, controlada, mas sim, atravessada juntos, amparada, respeitando a luta de cada um com o que é seu. Do lado de dentro, talvez a compreensão e consciência de que não podemos impedir o curso que é da vida e do outro, que acompanha-lo no seu trajeto, fazê-lo saber que estamos por perto basta como cordão de segurança. Que os contornos da liberdade, o tom de cada um, se acha escolhendo, experimentando, sendo feliz e se frustrando. E que talvez, como mães, não tenhamos que saber tudo. Que a fortaleza da relação com os filhos se dá naquilo que chega pelas mãos deles, entregues a nós a partir do que se sentiram livres a ofertar, do que a relação construiu e permitiu. E isso é bem mais valioso e trabalhoso do que controlar. Na minha humilde opinião, também ajuda a construir pessoas mais seguras e libertas.
Não existiam câmeras nem aplicativos de controle quando eu era jovem. Experimentei da vida um bocado e me sentia ligada aos valores que a minha família conseguiu me passar e aos meus próprios, aqueles que levantei em mim por conta, mesmo sendo acompanhada por eles de perto. Porque era de fora. E aquilo me ajudou a crescer. Talvez sejamos borboletas nascidas dos casulos dos segredos mais íntimos, dos quais vamos nos livrando conforme ficamos prontos para abanar as nossas asas coloridas, às vezes defeituosas, pequenas demais, grandes demais, mas próprias. Me parece que os “segredinhos” vão tendo seus dias contados conforme vamos envelhecendo e aceitando quem somos. Tendenciamos a viver da mais pura verdade quando amadurecemos…
Mas até lá, antes que o nascimento de novos tempos, de ideias prontas, de percepções conhecidas, amigas e aceitas se deem na gente, nos nossos filhos, desejo que possamos, em segredo, gestar aquilo que queremos entender melhor, escolher ou simplesmente vivenciar como experiência na vida, sem plateia.
Hoje ainda os tenho no espaço de terapia e naquelas conversas regadas a vinho com “as melhores”. Minha filha, no mundinho dela, no qual peço licença para entrar e tateamos juntas o que podemos compartilhar. Não é uma delícia navegar nas emoções sem que isso seja um “posicionamento”, uma escolha, e assim, brincar com a vida enquanto descobrimos mais sobre quem somos? Só experimentando e falando sobre, livremente, ou nos propiciando a liberdade de velar? Que não inventem aplicativos que sucumbam isso.
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