Saia de lantejoulas

Podia passar sem essa, mas fazer o que se as coisas se apresentam para a gente, né? Na sensação de que o carnaval, que há tempos é um vinho barato e sem charme na minha vida, já era página virada, lugar longínquo e dessincronizado de mim, fui convidada a cair na folia por gente que não merece não como resposta. A amizade e vontade de estar junto era tanta, que peguei a minha saia de lantejoulas e o meu chinelo mais confortável e escondi no fundo da mala de biquínis e roupas leves, pensando: vai que eu seja “obrigada” a me apresentar na festa?

E lá fui eu, e aqui quero dizer nós, a trupe completa, pelas estradas engarrafadas gaúchas, para nos juntarmos a mais três famílias com filhos e do limão tentarmos fazer uma limonada, ou do “vinho barato” algo mais saboroso e surpreendentemente prazeroso, quem sabe…

Confesso que não jogava canastra daquele jeito há anos. Falo da sensação de competitividade, ponto a ponto, peculiar aos jogos adultos. Não sabia nem contar mais. Quanto vale cada carta? Minha parceira de jogo sabia, então foi o suficiente. E de repente eu estava lá, armada com uma taça de vinho bom, meninas contra meninos, em um momento que eu não queria ver acabar. Só queria jogar e beber, até que me perguntaram que fantasia eu iria vestir na noite de carnaval.

Ah… que pergunta é essa? Sou uma integrante de um casal que não gosta dessa festa, que vive cheio de filhos em volta, funções domésticas, trabalho no telefone e valiosos momentos de relax com vinho e música no modo acústico, na sala de casa, em Bento Gonçalves, Santa Maria ou por aí afora. Que história é essa de achar que eu teria planejado uma fantasia de carnaval para a última noite de um feriado que já tinha me surpreendido com o prazer da jogatina, da tranquilidade de ver as crianças soltas brincando juntas, entre amigos, e das mesas fartas de invenções culinárias que justificassem beber mais vinho ainda, desde o final da manhã, estendendo o meu prazer da noite para a maior parte do dia?

Não perdi dois minutos com nada parecido com essa demanda. Mas precisei esticar o braço até o fundo da minha mala e tatear as lantejoulas e um top de cor crua, já que branco original já não me favorece mais, o que descobri em um teste de coloração também feito neste feriadão pra lá de estranho dada a quantidade de novidades…

Ja ia me esquecendo de contar que comi arroz, outra novidade.

Os maiores estavam em uma outra festa, mas a Antonella, nossa pequena, seguia nas nossas pernas… Eu tinha a desculpa perfeita: ficar com ela na casa, quase em frente ao clube da festa, e ainda dizer para a turma que podia ouvir a música e me sentir animada, junto ao “bloco”, logo ali de perto. Mas se o objetivo do feriado de carnaval, em parte, era o carnaval, tudo se ajustou para que eu realmente tivesse que estar lá, na pista mesmo, em frente à banda carnavalesca. Aliás, diga-se de passagem, posso dar esse nome à minha fantasia “enjambrada”. Purpurina faz milagre junto com lantejoulas, e o fato do tal “chinelo” ser dourado ajudou. Me fui. Fomos eu e o meu parceiro que odeia carnaval. E saímos de lá juntos, pouco antes da banda tocar a última música. Dançamos como “pererecas” soltas em noite úmida, bebemos como medievais, rimos como se não houvesse amanhã… E o carnaval se fez assim, de alegria.

É quarta-feira de cinzas, o que não significava nada para mim desde os meus vinte anos, quando eu entendia por experiência o motivo dele ser considerado “feriado” ou ponto facultativo no período da manhã. Acordar na quarta-feira de cinzas era acordar “em cinzas”, vendo o nascer do sol, se despedindo do verão, do excesso de bebida, dos amigos da praia, da época feliz do ano. Era como passar pela travessia escura entre o paraíso e a realidade nua e crua, em preto e branco e sem graça.

Então a gente cresce, amadurece, e percebe que nem o verão e as férias são um paraíso, nem o pós-carnaval é um precipício que nos acorda de um sonho bom. E o carnaval, que sempre foi um trajeto entre uma coisa e outra, tendo como único e aparente motivo de existir a função de “chocar” a nossa consciência, de nos reiniciar e de marcar a ferro e fogo a mudança do nosso ambiente, foi um conjunto de dias bacanas esse ano. O que consistia em caminho entre o “de leve” para “hostil”, acordou o nosso corpo para aquilo que um dia fomos e que ainda podemos ser, sob o design cada dia mais interessante da maturidade. O que nos mandava para casa, tirando o nosso copo de prazer da mão, o movimento faceiro dos pés, o papo jogado fora, as piadas descontraídas, a distribuição de beijos, abraços e promessas de novos encontros, nos fez retornarmos para casa zerados pelo excesso, de “chave virada” e de ressaca de dias inesquecíveis.

O que eu incluiria neste conto honesto de carnaval? Talvez o fato de entender que ele pode ser simplesmente facultativo. Que no ano que vem pode se dar na tranquilidade da nossa casa ou de algum lugar na serra. Ou ainda, em frente ao sofá assistindo séries ou mesmo um samba pela televisão. E que o tombo entre ele e a ausência dele é só o cansaço físico e as histórias para contar… Pois na quarta-feira de cinzas seguiremos a vida como ela é, com suas cores, amores e dissabores, o que por escolha é tão prazeroso quanto, ou mais, que o “alalaô” abraçada nos amigos. Simplesmente porque na vida cabe de tudo o que escolhemos. Até a minha saia de quinze anos de idade em lantejoulas douradas.

Morta… Em pó, mas não cinzas. Eu diria, coloridas. Me aprontando para recomeçar os dias que sucedem as boas celebrações com olhar atento a tudo que posso vir a celebrar sem fantasia.

Preciso apenas de algumas horas…Ainda tenho purpurina em mim:)

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