Já passou um cotonete no ouvido, fundo demais, ao ponto de sentir aquele choquezinho, aquela pontada dentro da cabeça? E que depois parece ressoar de tanto em tanto, tamanha a sensibilidade que deixou na superfície tocada? Pois estou lendo um livro que me cutucou como um cotonete atrevido. E pensei que talvez ele “cutucasse” você também, ou não. Vai saber?

Achei de qualquer forma que teria valor trazer a sensação que eventualmente toca algumas de nós mulheres, mães, a fim de nos reconhecermos, respeitarmos umas às outras pelas nossas possíveis diferenças no maternar, e assim, quebrarmos padrões que nos engessam aqui e ali, causam culpa e infelicidade. Uma hora ou outra somos vítimas do padrão. Daquilo que não está em nós e que a sociedade diz que deveria estar.

Pois a obra a qual me refiro se chama “A filha perdida”. Recebi a dica de uma amiga querida, leitora voraz como eu. O filme baseado na obra já está disponível no Netfliz, mas como prefiro o detalhamento da leitura, sugiro começar por ela, pelas páginas, caso você queira sugar todo o possível dessa experiência.

A história fala da realidade de uma mãe que sente o peso da maternidade e nos permite ler seus pensamentos duros com relação ao que viveu e perdeu. Dá esse privilégio logo a nós, que insistimos em nos julgar ou permitir que nos julguem pela mãe e mulher que somos. Corajosa ela, me cativou pela sua honestidade quase que cruel consigo mesma e nudez na sua exibição íntima ao leitor. Mostrou seu quartinho escuro, escuso, sem número, desconhecido ao mundo que a rodeava. Exatamente como faríamos se fossemos nós as donas dessa coragem.

O fato é que já falamos do tema aqui. Do quanto o lado desconfortável e eventualmente cruel da maternidade pelos olhos da mãe e da sociedade está presente no nosso ponto mais íntimo, solitário e silencioso para quem nos observa de fora. Como se o lado obscuro de ser mãe não pudesse ser falado em voz alta, e muito pelo contrário, pudesse ter vida apenas no subsolo da gente, úmido, solitário e pequeno. Uma peça que mantemos cerrada a sete chaves debaixo de nós mesmas a fim de escondê-la com o próprio corpo e com a arte de driblar o que é controverso e harmonizar os ambientes. Pisa em cima e segue. Não é assim, até entrarmos em erupção através de um divórcio, de um ataque de ansiedade ou de nervos com os filhos como plateia, ou ainda, nutrindo uma raiva, sensação de vitimismo, de que a vida nos foi tirada?

Pois bem. O livro permeia essa sensação. A história é maior que isso, mas se dá também por conta disso. Do sentir-se violada muitas vezes na tentativa de atender um padrão materno imposto pelos outros ou por si mesma. Como se perdêssemos o direito de gostar da própria vida, de nutrir-se dela, dos seus próprios sonhos, prazeres, talentos e silêncio. Como se, para ser mãe, precisássemos esquecer do que é nosso para virarmos seres disponíveis, amáveis e absolutamente insensíveis frente a tudo o que se abdicou para dar conta de maternar. E a nossa personagem principal adoece nesse caminho, como muitas de nós.

Não há nada de errado em decidir por abrir mão de si por um tempo, considerando que a maternidade exige mais do que algumas horas do nosso expediente, nem respeita hora marcada. Errado talvez seja ignorar o que se sente em relação ao que foi concedido, não balancear o desejado e o possível, e não desenhar um plano de equilibro que nos dê o respeito.

Quem me acompanha sabe da minha maternidade. Quem vive na minha intimidade sabe que hoje sou a pessoa mais disponível e próxima que os meus filhos tem na vida. Que faço tudo o que eu posso para estar “para eles”, fazendo o tal do “básico bem feito”. O que talvez não lembrem, e que faço questão de relembrar agora, é que eu tinha uma vida que eu gostava antes de ter filhos. Que eles não vieram para me salvar de alguma angústia, vazio, ou para cumprir aquilo que eu não tinha. No decorrer dos anos fui descobrindo novas partes de mim, novas paixões, coisas que me fazem bem e que não dependem deles. Prazeres meus, adultos, femininos, íntimos. E que por vezes imponho na nossa rotina de família, tirando um pouco daquilo que era mesa farta para eles, disponível a revelia e até não valorizada, na busca de equilibrar as coisas e me sentir apta na minha missão materna. Para não culpa-los, para não envenená-los ou a mim mesma pelo não dito, não vivido, dedicado e abandonado.

É disso que se trata a bofetada do cotonete que esse livro traz à mãe que se propor a ler e se desamarrar, corajosamente, caso se sinta assim ou mesmo algo parecido. A se abraçar por alguns momentos, capítulos, na mãe que assume o que sentiu já na maturidade e sofre os adoecimentos de ter mantido este quarto subterrâneo fechado sob os pés. Cheio de dor, de abandono e de solidão. Que se sinta encorajada a enfrentar suas próprias questões na manutenção da maternidade e de si mesma na mesma vida.

Há de se encontrar uma forma de maternar que nos proteja a saúde do corpo e da alma. De verdade acredito nisso. Só que precisaremos trazer para a luz aquilo que escondemos de nós mesmas ou fingimos não doer o suficiente para nos desamarrarmos da expectativa alheia ou daquela que vive no que acreditamos ser mãe. Acredite, prevenir ainda é o melhor remédio para o caos. E a culpa pelo que não fomos e pelo que geramos da nossa amargura nos próprios filhos pode ser mais avassaladora do que viver a liberdade de ser a mãe possível e uma mulher inteira.

Apesar de algumas caras feias, venho escolhendo a segunda opção. E na semana da mulher, nada mais justo do que validar aquela que a gente dá conta de ser, com liberdade. Não serei eu a julgar, pode acreditar.

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