Repassava a minha agenda na mesa do café da manhã enquanto a minha secretária doméstica se organizava para começar o dia. Trabalho de manhã cedo na rua, até o meio dia, quando assumo o escritório de casa e o olhar presencial sobre as minhas crianças. Almoço com eles, os levo na escola, acompanho atividades extracurriculares, chegadas e saídas, lanches, intervalos na rua com os vizinhos, rotinas de estudos, namoricos. Assim é todos os dias. Concentro à tarde minhas produções de conteúdo. Atividade “amiga” que me permite parar, recomeçar, voltar, revisar, refazer, atrasar dentro de um cronograma planejado ou, eventualmente, me jogar para o turno da noite, após as crianças dormirem, quando a tarde não dá conta.
Tomei meu café com os olhos inchados da alergia que se abateu no meu rosto por motivos ainda desconhecidos. Proibida de usar qualquer produto químico, exceto o creme de corticoide do tratamento, leio com certa dificuldade a lista de demandas do dia, como que abatida por uma conjuntivite. Sem maquiagem, hidratante ou perfume, completamente desarmada do que empodera a minha feminilidade, encontrei o olhar baixo da minha parceira de jornada adiantando o almoço a solavancos. Tem cinquenta e dois anos, cinco filhos, onze netos, e acaba de perder a mãe para o câncer. Já perdeu uma irmã, um irmão, um filho, todos jovens. E todos os dias se apresenta na nossa casa para a lida, sem atrasos, pois sabe e respeita a minha e o tanto que conto com ela.
A vida da mulher não é fácil. A minha querida ajudante e amiga dá conta dos filhos quando não bem sucedidos nas suas empreitadas. Adultos, vez ou outra voltam “arrasados” para morar com a mãe. Eles não tem pai presente, então contam só com ela. Quando seus casamentos terminam, a atrapalhação na vida se instala, ela acaba assumindo um a um dos netos para não deixar as pobres crianças abandonadas em meio as batalhas parentais e fugas afetivas. Com a morte da mãe, cada irmão foi cuidar da sua vida esquecendo que fazem parte de algo maior, de uma família. Sobram abandonos, problemas, mediações e guerras por pedaços de quase nada, e ela, sendo a única filha mulher viva, tenta, com a sua natural maternidade, cuidar dos que ficaram. Uma mulher de bem, sem dúvida. Que representa a maioria das mulheres mães que conheço.
Ouvindo a história dela e a ligando à minha e a de tantas, pensei na incrível sobrecarga pela qual passamos o tempo todo. Com filhos, com trabalho, com a casa, com a organização funcional das coisas de forma que facilite esse trabalho desafiador, com presença, com contornos afetivos, com lido pelo bem, pelos nossos, já que genuinamente não damos conta de assistir a desgraça alheia, o desamparo, muito menos quando se trata de quem amamos.
É da nossa natureza cuidar, não adianta… Mas que alternativa temos se não fazê-lo? Tive uma conversa com o meu pai dia desses sobre uma demanda familiar que exigia presença e afetividade e ele me respondeu que já tinha a empresa para cuidar, e que já era muito. Que precisaria que cuidássemos nós, filhas e mães, da solução para a questão. Estou dividindo porque de certa forma assim é em muitas das casas dessas “mulheres maravilhas” que muitas vezes precisamos ser, quando a demanda pede para cuidarmos de tantas coisas ao mesmo tempo para que essas não façam sombra àquilo que é mensurável na vida. De nos colocarmos de lado para ampararmos arestas, preenchermos lacunas, atendermos a quem precisa de presença, mediarmos a falta de lido dos outros, e ainda, em muitos casos, trabalharmos fora sem a devida valorização enquanto somos líderes do lar. Se não ocupássemos esse lugar, tenho certeza que de alguma forma as coisas se dariam, mas que jeito seria esse?
O sobrinho da minha parceira doméstica tem doze anos e anda armado na vila onde mora. Ela não tinha mais braços para cuidar do problema que era do irmão e as coisas se deram como foi possível. Então ele se virou “como deu” e hoje possui uma arma a tiracolo. A minha filha adolescente começa a viver seus primeiros “flertes”, suas primeiras experiências, e o meu filho do meio vive a avalanche da pré-adolescência e seus altos e baixos. Eu poderia trabalhar os dois turnos fora de deixa-los dando conta de suas vidas e descobertas… Mas sozinhos, onde podem parar? Sem um olhar, mesmo que sutil e esforçadamente respeitoso da mesa do meu escritório em casa, até onde iriam na busca por se entenderem no mundo, sua segurança e aos seus limites?
Que alternativa eu tenho? Enquanto muitos pais trabalham fora como se isso fosse sua única missão na vida, mães assumem infinitas missões aparentemente invisíveis. Ocupam o lugar na velha cadeira materna, aquela instalada no meio do pátio onde as crianças brincam, crescem e a família anda, se fazendo presença, cuidado, retaguarda para o momento em que caírem e olharem para trás em busca de apoio, de validação, de direção. Até que sintam dentro de si a presença de pai e mãe, ainda assim, olharão para trás na busca por lembrar quem são, do que eventualmente embaça, é dúvida, questionamento, atrapalhação ou mesmo necessidade de transformação em si e na vida.
Nossa missão é bem mais do que prover, do que realizar projetos e ter algum reconhecimento com isso. Ela permeia a manutenção da vida, a viabilidade dela, e na sua forma mais sutil, a qualidade daquela que as pessoas que cuidamos estão construindo para si. Diferente disso é deixar a vida levar, dar conta, e correr o risco de vivermos como aquilo que eles conseguiram ser sem o cuidado que oferecemos com talento e às custas de muita exaustão, ansiedade, crises alérgicas, terapias, solidão e invisibilidade.
Que alternativa eu tenho? A que me permite dormir à noite, ser porto por reconhecer nele um valor profundo, ser ativista da mais honrada das carreiras, mesmo que invisível, ser água em terra de pedras, olhos em terra de cego. O salário não é bom, não dá qualquer estabilidade. De alto risco, não garante resultado. Desprotege financeiramente e talvez até intelectualmente, eu tenho a impressão. Nutre um valor básico e não reconhecido. Assim como é a água do planeta, o oxigênio, o clima, os mares. Como a natureza, a mulher mãe trabalha pela sociedade de forma silenciosa, natural, sutil e sem méritos. Aparente apenas no estrago dos tsunamis, das chuvas, da seca e na imagem de uma criança de doze anos armada com um fuzil ou de uma menina de treze anos grávida. De pessoas dependentes de “fugas” para dar conta da vida por terem sido jogadas nela enquanto nós pais vamos trabalhar.
Que alternativa a gente tem? Eu só vejo uma. Dane-se o resto… Mas essa é a minha, de certa forma privilegiada. E a minha secretária do lar, minha amiga, minha fada? Que alternativa ela tem? Talvez rezar, enquanto olha o mundo desabar à sua volta.
Comentários