Existe um tipo de luto, uma tristeza inerente à vida, percebe?  A tristeza vem e se instala naquele momento em que uma música toca a nossa sensibilidade, ou a gente congela uma cena para sentir a brisa, olhar uma formiga caminhando enquanto carrega um ramo verde, ou quando se hipnotiza por um filho e seus movimentos naturais enquanto come ou conta uma história da escola. Sabe o que eu quero dizer? Uma tristeza que reconhece com gratidão o que nos entorna, mas com uma certa melancolia por aquilo que deixamos para trás ou que poderia tornar aquele momento perfeito? Sabe?

Às vezes, assistindo a um filme daqueles de romance com drama, estrangeiro, dos que eu mais gosto, no qual a mocinha se esgota por uma situação qualquer, mergulha em si mesma e na vida, resolve dar uma reviravolta, arruma a mochila e pega a estrada sozinha, dói aquela parte de mim que ficou para trás. Aquela que carregava só poucas roupas, uns CDs, uns livros e uma nencesserie pequena com o básico do básico, talvez um rímel e um blush, já que nunca fui de batom. Sinto falta daquela que se movimentava com desenvoltura quando o “bicho pegava”, mudava de rumo, oxigenava a vida com recomeços leves, quase orgânicos de tão “sem muito esforço”, já que não comprometia a quase ninguém além de mim mesma. Uma tristeza daquilo que abri mão de ser, do que não escolhi, mesmo que sem qualquer arrependimento, por ser feliz com a minha bagagem pesada de responsabilidades e medos de perder. Uma saudade de mim mesma talvez, quando a dor era multiplicada por apenas um… Quem nunca?

Também, junto a isso, significa olhar sim para a vida hoje e ser grata pelas escolhas feitas, mas esse não é o cerne da questão sobre a qual estamos conversando eu e você. Reconhecer o ganho do que se escolheu faz parte da maturidade sadia que viemos desbravando diariamente, nós, eu diria, mulheres maduras… Falo especificamente do que não veio com a gente ou que se deu conforme possível, não ideal. Do que decidimos, quando escolhemos, deixar para traz, mesmo que também fosse parte da gente, que também nos fizesse bem, que também falasse por nós. O nosso “lado B”, quem sabe…  Por isso a sensação de tantos velórios e outros tantos enterros na vida. Como não sentir tristeza como parte da felicidade?

Se parássemos para pensar durante essa vida louca na qual passamos tentando nos convencer de que fizemos a coisa certa quando escolhemos por “A” e abandonamos “B”, e reconhecêssemos a parte da gente que perde, talvez pudéssemos nos sentir menos vítimas e mais agentes na consolidação, afinidade e carinho para com o que nos constitui e à vida escolhida. Com o que nos tornamos. Ficou complicado né? Quero dizer que aceitar as nossas tristezas só fortalece o nosso processo de escolha, o nosso poder de avaliação de caminhos com base na realidade, e não na idealização.

Talvez se navegássemos nas nossas naturais frustrações, tão da vida, fosse mais fácil mensurar nossos pesos e aceitar que fizemos o melhor que pudemos na direção do que nos fazia mais sentido no momento em que tudo aconteceu.

Vivemos a impermanência. Tem um quadro, uma obra de arte citada por uma grande amiga e que está na parede de alguém que ela gosta muito, que traduz o “impermanente” na tela. Olha que interessante! A tela muda a cada dia. Se decompõe e transforma a sua imagem. Como acontece com a gente quando muda aquilo que é e a forma com que olha o mundo. É impossível entender com a cabeça de hoje a escolha feita ontem, principalmente quando a vida exige e não reforça o caminho que tomamos com resultados só bons, só de sucesso, mas reais, como deve ser em qualquer caso, já que nada é só bom ou só ruim. O mais bacana de tudo é que a mochila que se acomodava, aderente e familiar no momento da decisão, hoje pode ter peso de pedra ou de pluma em um novo momento da gente. Talvez por isso nos perguntemos, “faríamos de novo?” “Onde estávamos com a cabeça?” Ou, por certo, “faria tudo de novo, ora!”  

Pode ser sorte de principiante, pode ser exigência necessária do caminho, aula que não pode ser “matada”, aprendizado necessário… A gente quando escolhe se despede de um caminho e aceita outro. Aposta a própria vida em algo e, ao rejeitar qualquer outra opção, vivemos o luto daquilo que um dia podia ter sido e não foi por falta de água, de fé, ou por abandono nosso. E me parece estar tudo certo com o exercício de olhar para traz sem medo de lembrar do que se perdeu no trajeto, sentir saudade do que um dia fomos, nos darmos conta de que somos fruto de todas as nossas vivências, melhores ou piores,  e que as coisas estão no seu devido lugar, exatamente onde deveriam estar.

Encontrei no final de semana uma amiga da escola que a pouco sofreu um acidente grave enquanto realizava o seu esporte. Ela, uma atleta. E neste infortúnio teve sua maior força, grande parte do que ela é, ameaçada pelas consequências de um incidente. O corpo, sua maior ferramenta de prazer e de trabalho na direção de um propósito pessoal, foi rudemente ameaçado. Daquelas coisas que acontecem e que não controlamos, que jamais escolheríamos atravessar. E então a vejo “transformada” em uma fila de vacina… Aparentemente recuperada, teve o evento tempestuoso como porta, janela, chame do que quiser, para uma nova forma de viver. Sob a ameaça do incontrolável, sob a consciência do que não nos cabe escolher, redefiniu seu caminho com os recursos do presente, que são tudo o que a gente realmente tem. Não somos, estamos, e ela usou a sua nova “sala de estar” para se reinventar.

Já diz a música da minha série preferida, “This os Us” (já fica a dica aqui), que tudo o que temos é um “pra sempre agora”. Aquilo que podemos hoje contar em poucos minutos e que fala de uma vida toda de escolhas e concessões que nos trouxeram para o exato lugar e o exato minuto de agora. Que jamais seria se na sua impermanência não tivesse tomado caminhos e se enlutado pelos que ficaram para traz.

E eles nos visitam sempre, as passagens da nossa história. Com gosto de melancolia, às vezes. De saudade, de dor, quando ainda não nos sentimos prontos para lembrar e lidar com o que não volta mais, e que diz tanto sobre o crescer. De felicidade, pelo desfecho que teve, mesmo que entre trancos e barrancos de uma vida que pede evolução além do prazer. Que de fato é o que reforça o nosso caminho no ato de seguir se reconhecendo e “reescolhendo”. Entendendo as mudanças e evoluções pelas quais tivemos o privilégio de passar. Com a tristeza como bagagem valiosa. Como sentimento e memória de quem viveu e segue aberto a viver mais e mais, caso este seja o plano.

Então, minha cara amiga, passei aqui, aproveitando o privilégio de ter a sua atenção, para perguntar como andam as suas tristezas, seu maior acervo na vida. Esse que, combinado com os momentos belos que mereceram lugar nos porta-retratos do seu lar ou na timeline do seu Instagram, compõem a pessoa forte e vitoriosa que chegou até aqui. Viva. Que não precisa ter aplausos de grandes plateias, nem sua fama reconhecida, nem ser “arroz de festa”, nem ter a aparência da moda com o que é “da hora”. Para onde a gente caminha, pela nossa estrada de pedras que nos leva ao envelhecer, também um privilégio, o nosso “auto-reconhecimento” é tudo o que há de mais valioso. Nossa maior e melhor companhia, nossa maior segurança nessa jornada da impermanência, nossa única certeza. Talvez a única coisa permanente enquanto estamos vivas… A nossa presença. Aquela que abraça o seu percurso e segue o seu próprio curso, com tristezas e alegrias.

Como disse a pouco a maravilhosa Helen Mirren, aos seus 76 anos, preferível o “crescer” ao “envelhecer”, processo que está aí para nos deixar mais sábias. Com o que pode ser, eu complementaria, o seu ingrediente principal: aquilo que eventualmente nos colocou tristes, reflexivas e conscientes do que não se deu ou se deu de acordo com o possível na nossa própria vida. Nos permitindo viver bem com as nossas escolhas e dores, familiarizadas com tudo o que se passa na gente. Isso já é muito. E nos faz imensas, capazes de qualquer coisa, conforme o tempo passa.

Ela tem razão, a gente cresce. Soa, além de mais verdadeiro, bem melhor…

Comentários

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *



NEW FAMILIES