O amor nos rouba em parte da gente. Isso me parece um fato. Não é assim no amor romântico, na maternidade? A gente não se perde da gente mesma muitas vezes, dada a distância que tomamos daquilo que somos para atender o todo, o outro? Sem falsa modéstia ou isenção de culpa do próprio abandono, mesmo que deliberado, medido… é isso. Vida real. O empoderamento nas relações é belíssimo, mas não existe convívio, compartilhamento de espaço e de vida sem uma boa negociação de interesses e um tanto de concessões aqui e ali. Se perde de um lado e se ganha do outro. Só que por ser o amor bom, fiquei pensando de que jeito fazemos essa coisa toda funcionar de forma que respeite mais os nossos contornos íntimos e individuais e assim mesmo seja profundo, nos leve a outro patamar de relação, de afetividade e entrega.

Como trazer a gente junto sem que o desequilíbrio aconteça? Sem que não sejamos mais uma coisa ou outra, gerando desconforto da parte mais escassa na gente, que perde e até mesmo desaparece?

Então pensei que talvez trocar o “roubar” por “negociar”, ou misturar, pudesse ser uma saída de nome mais bacana e emocionalmente mais fácil de engolir, talvez por soar uma escolha consciente e poderosa e não algo tirado de nós mesmos. Deixo a frase mais bonita, e mais racional, mas sigo tirando de mim. Afinal o amor é ausência de razão, não se explica, não necessariamente. E considerando que somos todos seres imperfeitos e diferentes, qual é a mola propulsora, o que faz valer a pena ou não valer os ônus que acompanham os bônus que já conhecemos?

Fui uma mulher abusada na vida, como muitas aliás. Por mim mesma e por tantos que andaram comigo. Quem não é ou foi? Pensa bem… Desde que nasci, por conta da minha personalidade sensível e compreensiva, tenho a tendência a abrir mão aqui e ali de coisas importantes, mas menos importantes que o afeto sentido. Essa sempre foi a minha medida. Venho de uma família de mulheres servis, e isso é uma característica, não um defeito. Então fui assim com amigas, com namorados, com noivo, com primeiro marido e com o que veio depois, meu parceiro de vida. Sempre fui a criatura da harmonização, talvez esteja aí a minha intimidade profunda com os vinhos. Apesar de formada “vendedora” na vida, uma mulher de negócios, a concessão nas negociações emocionais, a busca por alternativas que fizessem eu “caber” onde desejava sempre foi uma característica minha. E em muitas vezes, mais vezes do que eu gostaria, deixei partes de mim de lado. Me permiti o abuso.

O perigo desse movimento é nos perdermos, sabe? Juro que me perdi. Não foi uma ou duas vezes. Foram muitas. É difícil aprender quando o afeto não se repete, nem a pessoa, nem a cena, nem o “produto negociado”, nem nós mesmos. As regras não valem para tudo, nem para todos, definitivamente. Nem aquela regra que protege acima de tudo quem somos, de forma rígida, está isenta aos incidentes que podem, por exemplo, nos impedir de crescer, se expandir, mudar o que pode ser mudado para melhor, evoluir nas relações de afeto. E aí vem a capacidade da gente de entender o que é valor e forma inegociável, e o que pode ser transgredido para, quem sabe, um jeito mais sábio, um caminho diferente do que conhecemos, um gosto novo, uma mistura que vale a pena como a goiabada com queijo. Então imagina a coragem que envolve…

Escuto de muitas sobre o desejo de conhecer e amar alguém ou algo na vida. O desejo de compartilhar o caminho, de andar junto com pessoas ou sonhos. Conheço outro tanto, de quantidade não menos substancial, que não quer mais relações que demandem mistura, o que é inerente ao amar, e que administram sonhos nas margens do possível, sem grandes desafios ou violências, mantendo tudo na seara do sadio e sob controle. Só que o amor é generoso. Não levanta muros, constrói pontes, sem ser piegas aqui, ok? É a mais pura verdade sobre este afeto nobre. Ele te convida a conhecer uma realidade nova, compartilhar ela com o outro e, inevitavelmente, negociar os termos da vida individual de cada um. Uma alquimia sem receita certa. Um golpe de boa sorte, trabalhado e analisado no detalhe para ser viável, ou negligenciado para não doer na hora do fim. Receber o que não é seu, oferecer o que é, promover o convívio das diferenças simplesmente porque o ponto divergente às vezes é o pote de ouro do outro, me parece do jogo. Tem valor inestimável. E é neste momento que todo mundo que ama vira negociador e a questão passa a ser o que é “ganhar” nessa relação.

O fato é que a melhor mistura, o “ponto” dessa receita entre a nossa integridade física, moral e emocional, e o ato de amar, ainda são um mistério para mim. E talvez por isso seja tão instigante, tão sedutor e motivo de tanta atrapalhação. Por ser indecifrável, por não vir com bula e, mesmo com boas práticas faladas e publicadas por aí, ainda assim, não ter garantias de satisfação ou “pegue seu dinheiro de volta”, seja talvez o grande aprendizado personalizado da vida, no qual cada um de nós viverá a sua história. Incomparável, incontestável, digna de respeito. Cada um no seu processo.

Minha dúvida é, entre quatro paredes, estamos evoluindo nisso ou seguimos vivendo o mesmo drama, só com fotos melhores e frases de efeito? Gostaria de dizer que tudo se resumiria em nos apropriarmos da força feminina que conquistamos até aqui. Que isso seria o marco do qual precisávamos para vivermos a plenitude e o equilíbrio das relações. Mas somos carregados de histórias, da nossa ancestralidade, da cultura que nos formou, daquilo que nos faz únicos nesse universo de possibilidades e cheios das nossas batalhas íntimas e incomparáveis. Então, que sejamos negociadores de nós mesmas. Conscientes e responsáveis. É um processo que só nós podemos abraçar e no qual só nós podemos perceber perdas e ganhos, assim como a felicidade que há em tudo isso. Ah, vale lembrar, sem fadas… Nos contos do amor real elas não existem.

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