Quando eu era criança, na minha família classe média e vivendo os plenos anos setenta e oitenta, eu não tinha escolha para nada. Quem é da época sabe como era. Éramos eu e duas irmãs, meus pais trabalhavam duro para termos o mínimo de conforto, e em família grande, vivíamos como podíamos. Se comia o que se tinha. Se bebia o que se tinha. Lembro bem que era limonada ou água, e na casa da vó, suco de groselha bem diluído e preparado por mãos adultas e econômicas. Se estudava na escola que os pais definiam, na maioria, públicas. Se faziam as atividades que eles achavam melhores para nós e que tinham condições de pagar. Não tínhamos muitas roupas, eram outros tempos… Eu diria que éramos menos consumistas, nossa sociedade era, eu acho. Ou lá em casa era assim, pelo menos. No nosso mundo. Então comprar um tênis era um grande evento assim como só eles, os grandes eventos, justificavam uma saída atrás de um traje novo. Além deles, só quando as peças deixavam de servir. A escolha era da mãe, a gente vestia o que ganhava, o que dava. Então não era um hábito escolher e por isso não se tornou uma habilidade minha, pelo menos. Reconheço em muitas da minha época essa falta.
Escolher é uma das coisas mais exigentes da vida. Um ato cirúrgico que sempre traz consequências. Que exige auto responsabilidade. Posicionamento em prol de algo ou alguém. Nos coloca em um lugar no mapa da vida, no jogo. Nos tira do esconderijo, de cima do muro, de trás de alguém. E por ser de toda essa importância, exige treinamento que só na caminhada da nossa própria vida podemos adquirir se formos espertos e atentos às oportunidades.
Nos meus quinze anos, o presente meu e da minha irmã quase gêmea, na época com quatorze, foi uma viagem para Disney em família. O nosso sonho era ter os tênis da Reebok ajustados no pé, e que se apresentavam nas mais variadas cores. As meninas mais “transadas” da nossa idade usavam a paleta completa de cores nos seus diversos pares de tênis importados. Azul, verde, rosa, vermelho, amarelo, mostarda, preto, branco. O mundo se dividia em quem os tinha e quem não os tinha. E no meu sonho mais lindo eu os compraria, a todas as cores possíveis, na nossa viagem de aniversário. Eis que cada uma de nós recebeu um valor para gastar, fizemos uma viagem contida respeitando as nossas posses, e o que pude foi comprar um tênis branco e outro mais simples para as aulas de educação física da escola. Então, baseada no possível, não tinha escolha. Teria que ser o encontro da necessidade com a disponibilidade de investimento.
Um dia, moça já e com um salário invejável como treinee de uma multinacional, sem filhos e ainda morando com os meus pais, entrei em uma butique bacana de uma galeria do meu bairro. Na dúvida entre duas cores de jaquetas em couro puro, uma branca e uma verde militar, levei as duas. Fui incapaz de escolher uma só, mesmo após horas na loja exercitando as combinações mais viáveis de cada uma delas com o meu guarda-roupas. Que ironia… quando pude escolher, escolhi por tudo. E assim naveguei no tudo ou nada pela vida. Foi tudo suado, então sempre fui exigente com o que escolhi, mesmo que fosse justo o que me restasse. Porém, também sucumbi às exigências dos outros para ser escolhida.
A maturidade chegou para mim e com ela as decisões grandes. Casamento, filhos, carreira, que tipo de mulher eu queria ser. A gente precisa se conhecer para escolher. E quando se dá conta que de nós mesmos também não sabemos muito, as escolhas vão se tornando cada vez mais complexas e sem garantias, exceto quanto ao seu custo. Fui me agarrando no que era bom e subestimando o que não era tanto. O positivo sempre vibrou mais para mim do que o negativo. A gente acha que o que define uma escolha é só conhecer o que a gente quer e esquece de levar em conta aquilo que a gente não quer. E por aí adiante escolhi e desescolhi muitas vezes. Paguei o preço de cada escolha boa barato, e caro para cada escolha não tão boa assim. Talvez os custos tenham sido justos, só pesam mais no bolso aqueles cujo produto da escolha de alguma forma deixou de atender ou não era bem o que dizia no manual de apresentação.
Com um guarda-roupas ainda repleto de escolhas pouco usufruídas, de alguns enganos, sigo sob o seu convite ávido para que eu exercite essa musculatura do escolher. Assim se dá com a minha alimentação, com o que entra e com o que sai do cardápio que me nutre. Com as amizades que escolhi hoje alimentar, manter perto, e com as que naturalmente deixei pelo caminho a andar no seu ritmo. E assim também materno e cuido do meu coração. Escolhendo aqui e ali, perdendo, ganhando, aprendendo quando só resta essa alternativa.
O grande desafio parece ser enxergar o todo de cada coisa, de cada cor, a fim de tomar a melhor decisão em cada ato. Nem sempre se escolhe com base em tudo o que se vê. Às vezes o fazemos com base no que queremos enxergar, às vezes naquilo que parece, outras a partir da amostra a qual temos acesso. Não dá para escolher uma estampa só pela cor que se gosta sem levar em consideração aquela se se apresenta ali, junto, e que não se tolera. Nas coisas mais importantes da vida não existe uma cor só, ou só o bem, só o bom, só o que se admira. Nunca é simples. Então escolher é sempre uma aposta, um investimento nosso em algum caminho sem garantias exceto o fato de que não sai de graça.
Estamos aí em tempos de escolha. Todo o dia é dia. No nosso mundo e no mundo todo. Escolher é estar vivo na própria história e naquela que conta a nossa era. Que sejamos escolhedores em exercício sempre. Quem sabe, desenvolvendo essa musculatura possamos ser melhores para o mundo e para nós mesmos.
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