Achei que era surda. Na pressa, distraída, acabei ficando. Achei que era hiperativa, que tinha déficit de atenção, e que o meu filho do meio, agitado como eu, teria puxado de mim essa má sorte. Achei que os meus problemas cognitivos eram gigantescos, ao ponto da minha qualidade de vida ser afetada. Achei mesmo que eram. Fui ao neurologista inclusive. Cogitei até medicação. Quem sabe algumas “boletas coloridas” me ajudassem a prestar atenção novamente, a entender uma história contada uma vez só, uma fala das crianças na mesa do almoço, mesmo no alvoroço, ou algo que simplesmente estivesse no ar, nas sutilezas do olhar, do movimento dos corpos, e não tivesse sido dito.
Achei que estava doente. Debilitada. Achei mesmo que estava. Ao ponto de buscar explicação na minha genética familiar para tal, somada ao diagnóstico de uma Covid longa, um alívio para a minha ansiedade. Estava com pressa, querendo responder a tudo e a todos, não deixar ninguém esperando. Detesto, aliás, deixar que me esperem. Que dependam de mim, da minha entrega. Adoro fazer com que todos se sintam confortáveis e no seu tempo, autônomos, e para isso, corro nos bastidores feito uma louca completa. Sempre foi assim, sempre fui assim. A ansiedade e a auto exigência acabaram crescendo em mim como mato, fazendo de mim um ser “sobre aviso” mesmo no meio dos momentos mais interessantes da vida.
Pois quero te contar uma coisa. Já tinha identificado que os meus sintomas se tratavam da doença da mulher moderna, aquela que quer ser tudo e mais um pouco. Ou do ser humano atordoado de hoje, de todo o gênero, que vive entre a realidade e o mundo paralelo da idealização multimídia. Queremos ser “omnichannels”, ter vida on e off-line ao mesmo tempo, com presença em vários canais da vida. Chamaria da tal da síndrome dos super-heróis, que podem tudo, que estão em todos os lugares ao mesmo tempo, fortes e de boa aparência, incansáveis. Mas não conseguia entender como sair disso, desse funcionamento que parece ser o novo procedimento padrão do viver e tão incompatível ao ser humano. Como iniciar o dia seguinte diferente, falar com calma, andar devagar, deixar para depois, fazer uma coisa de cada vez e apenas o possível, sem sofrimento?
Em poucos movimentos já me encontrava na voltagem máxima, no duzentos e vinte volts. E aí, me via surda. Me via atrapalhada, estabanada, desatenta. Não sentia gosto da comida, bebendo a vida às pressas, no “guti-guti”, como se diz. Deixando de perceber as sutilezas mais incríveis que permeiam o mundo no qual vivemos, as relações, a natureza, a ingestão, as sensações, o toque das pessoas, o amor que está por tudo.
Eis que no último final de semana nos propusemos, eu e o meu marido, a um retiro espiritual. Não vou contar detalhes aqui porque não posso, mesmo ansiosa para isso, como forma de resguardar a experiência para os que um dia decidirem por fazê-lo. Mas uma coisa eu posso contar. Que foram quarenta e oito horas exatas sem celular. Quarenta e oito horas da descoberta pura e simples do que me entorna e me toca. De conversas ao fundo, do prazer dos sussurros, da liberdade que é não registrar, não controlar, não retornar, não correr para atender, apenas viver, me permitindo assistir antes de agir. De olho no olho, sabe que existe ainda? Foi comovente para mim. Ouvir a musicalidade da voz, do violão, dos eucaliptos ao vento, das panelas batendo, das risadas, do silêncio necessário ao pensar. O calor, o frio, a entrega do outro em uma conversa, o tempo de elaboração, o choro, a alegria, tudo respeitado. Mastiguei a comida, olhei em volta, ouvi conversas, contei coisas minhas, falei das crianças. Enxerguei meu marido como há tempos não enxergava. Ouvi o silêncio dele. Não havia nada em suas mãos, nem nas minhas. Pudemos nos tocar, nos abraçar e conversar sem intervenções eletrônicas e sem pressa.
Perdi o celular de vista e vivi como nunca. Sem a ansiedade de arrumar as coisas, de deixar todos bem, degustei a minha presença no mundo e ele todo. Não estava surda, não tenho qualquer deficiência importante. Não suficiente para me amortecer, me tirar da cena. Viver é presença, não há dúvida. Não podemos estar em mais de um lugar ao mesmo tempo e que importante deixarmos de tentar e assim estarmos inteiros onde quer que seja.
Como uma boa pessoa de verdade, de carne e osso e imperfeita, sei que a estrada desse aprendizado é longa. Que serei açoitada diariamente para fazer aquilo que eu “tenho que fazer”, que disse a mim mesma que deveria, que deixei que me dissessem. Assim como um dia achei que quando se falha nessa correria toda, desgraçamos a nós próprios e ao nosso modelo de vida perfeita, o que já me causou muito sofrimento. A vida é bem mais que isso. Que o castigo de ter falhado, de ter deixado para lá, de ter recomeçado. Os erros são a parte que clareia o nosso processo, que nos distancia das idealizações, que nos aproxima do dia em que nos perdoaremos por sermos somente o que somos e andarmos calmamente pelo nosso caminho, apreciando a vista.
Indico o retiro e indico o desafio de sair dessa roda vida na qual nos colocamos. Ouvi outro dia que os filhos são o que são porque são, não por nossa causa. Se é assim, o resto deve ser o que é, independentemente de nós. Então larga as rédeas. Deixa fluir. E quando desejares correr, sentir o vento no rosto, o faça como se estivesse no lombo de um cavalo… Com presença e atenção para sentir o passeio temendo apenas o que realmente é perigoso. Se andares com o celular ou outras coisas na cabeça, pode que não sinta nada além da angústia do que ficou para trás.
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