No ambiente das novas famílias foram estabelecidas nomenclaturas para se chamar os integrantes destas e que estão fora do padrão da família tradicional. Falo aqui na madrasta, mãe emprestada ou mãe de coração. Falo, no meu caso prático, do padrasto, pai emprestado ou pai do coração. Dos avós emprestados e tios, aqueles que vieram depois, com a nova família, e que não são de sangue. Enfim, familiares que por falta de origem comum, tem na nomenclatura popular limites para o afeto. Limites para amar. Como se fosse necessário medir o quanto dar, o quanto sentir, pois em algum momento pode não ser mais. Como se pudesse devolver o que era só emprestado. Que cruel isso, né? Que profundo esse significado? Em que momento da vida, seja com um amigo, um animal de estimação ou um relacionamento romântico somos conduzidos a amar menos, ou com cuidado? Quando isso faz sentido?

E a minha pergunta inconformada: Por quê na família estabelecida pelo afeto o limite está no crachá que essas pessoas carregam? Na posição que ocupam e que precisa ser exposta na sua diferença a todo tempo, quando os inserimos ou apresentamos ao nosso mundo?

E aqui queria trazer o que para mim pareceu o pior dos efeitos. O que agora faz parte da minha realidade. O irmão emprestado, meio irmão ou irmão por parte de mãe. A coisa mais sem fundamento com a qual já lidei na minha experiência de construção de uma nova família. Como assim meio-irmão? Como assim irmão emprestado ou por parte de mãe?

Meus filhos serão irmãos da bebê que chega a vida toda. Fisicamente falando, de onde quer que estejam, do lugar onde escolham viver. Em qualquer uma de suas casas. Fisiologicamente sim, neste caso, porque vieram da mesma barriga, mesmo isso não sendo o mais importante ou apenas uma alternativa. Mas a que mais me importa e que dá perenidade à relação, é o motivo da escolha. Aquela que os meus filhos já fizeram por terem dentro de si o amor por quem o sentem como referência. Integralmente, não aos pedaços. Aquele afeto que se desenvolve, que o coração se abre para receber. Que escolhe quem querem ter por perto, que somam os amores. Como fizeram, por exemplo, com a prima que ganharam por parte do pai afetivo, e que consideram parte deles e de suas vidas, independente da condição pela qual chegou. Mas mais do que isso, o que passaram a entender com a sua nova família e a importância que deram a ela. Importância igual a dada a que tinham, e na qual reconhecem a força da construção.

Existem irmãos de pai e de mãe que não se relacionam. Seja pelo motivo que for, por falta de afinidade, por dificuldade de se relacionar ou por valor mesmo. Por não entenderem esta relação como base na vida, ou a família como referência. E se formos analisar por este ângulo, quando a relação é administrada desta forma, tanto faz a origem, o formato. Pois se escolheu não a ter.

Aí, no contraponto, existem os que se consideram irmãos no amor. O que já vi acontecer entre amigos, entre primos, entre grupos formados por crenças religiosas, entre pessoas que por conta da relação de amor nova do pai ou da mãe com outro, ganham um irmão. Pronto ou encomendado. E que nesta relação estabelecem afinidade, carinho, amor e respeito. Como relações humanas se estabelecem.  E aí, nesta condição, não acham palavras para dizer, para explicar aos outros seus vínculos. Ou precisam contar longas histórias impossíveis em uma conversa de elevador, na entrada e saída do clube ou da escola, e nem mesmo em uma roda de crianças, quando o questionamento quanto ao que são um do outro é feito. E isso é muito doloroso. Destrata, mas é uma realidade. E aí machuca a criança por dentro. Encurrala. A deixa perdida na própria história. A torna diferente do que ela deveria ser ou a que pertencer. E sem saber como explicar é induzida muitas vezes a mentira, ao constrangimento e principalmente a magoar sem querer a si mesma e à sua família, do jeito que é, por não saber se explicar na sua constituição. Culpando muitas vezes quem os colocou nessa relação, que é de ganho, mas neste momento parece mais de perda.

Minha pequena, no início da nossa nova família e no estabelecimento de suas rotinas, amava que o pai afetivo a buscasse na escola. Mesmo porque não eram todos os dias da semana que ele estava aí, então quando estava, ela vibrava com a surpresa da sua presença na porta da escola. Até que foi questionada por coleguinhas sobre quem era ele em uma de suas aparições. Perguntaram se aquele era o pai. A resposta simples na maioria das vezes para um adulto, não era para a criança. Contextualizar uma família que tem pai, mãe, pai afetivo, popularmente chamado de padrasto, fora os familiares que nela se estabelecem, não é fácil para uma criança no ambiente infantil. Onde os padrões de estrutura das histórias felizes trazem pai, mãe e filhos, e padrastos e madrastas como seres maus. Intrusos, mensageiros de maus tempos para a família. E ela sentiu e falou da dificuldade de explicar sua constelação.

Porque são papeis mal colocados pela sociedade. Porque trazem consigo a possibilidade de abandono, de maldade, de distância afetiva. Tudo o que é só parte de uma escolha. Das partes envolvidas. E que por ser mal nomeada e interpretada na nossa cultura e mesmo nos meios de comunicação mais modernos, é tão injusta com os integrantes das novas famílias que fazem no seu dia a dia simplesmente diferente. Que o fazem legal, agregador. Relações de afeto que muitas vezes duram a vida toda e que quando não duram, estão sujeitas a esta sorte como qualquer outra relação, inclusive a de mães e pais biológicos que se isentam de seus papéis, de suas responsabilidades. Imagina se o medo do fim regesse as relações de amor? As pessoas não amariam. E como sabemos que isso não acontece, e as pessoas se entregam a ele, graças a Deus, porque não se entregariam às relações propostas nas famílias afetivas?

Então, realmente não sei do que chamar essas pessoas especiais que constituem lindas famílias de afeto. Por que nenhum nome que conheço, mesmo os populares, me parecem justos. Para mim, são só meus amores. Os quais admiro profundamente. E que aqui dou voz e mostro o tanto de coisa boa que são e que tem, na capacidade de construir.

Se fosse depender das pessoas ou da televisão, ah…. Em um mundo no qual a crueldade vem de tantos lugares, da própria família, do pai que joga a filha pela janela, das mães que envenenam filhos, dos tios que engravidam sobrinhas, assisto com tristeza, mais uma vez, a novela das oito da Rede Globo colocar o padrasto como abusador da enteada. E me dou conta que nado pequeno no reconhecimento desse afeto enquanto grandes tubarões fortalecem as madrastas más e padrastos criminosos.

Mas ok, não me canso…. Ainda seremos justos conosco e com eles. Com as nossas crianças. Ou que seja, com a minha família. E se conseguir que no meu lar este entendimento seja diferente, a várias mãos, já estaremos fazendo a nossa parte.

 

Comentários

  • Mariana 28 de fevereiro de 2019

    Juliana, que alegria ler teu texto. Senti como um carinho no coração. Tenho uma família reconstituída, meu marido tem dois filhos que eu amo muito, sempre me referi a eles como filhos do coração, pois assim os sinto. E eles sabem desse amor. Certa vez em um passeio com um amiguinho que não conhecia sua mãe, este questionou por que ele me chamava pelo nome e se eu era a mãe dele. Ele respondeu que eu era sua madrasta. Neste momento o menino me olhou com uma cara bastante assustada e repetiu “madrasta”? Certamente para ele não faria sentido, alguém com tanto afeto como eu poder ser uma “pessoa mã”. Seu pai explicou com muito carinho e ele se tranquilizou e foi lindo. Mas carregamos o peso das palavras, muito mais do que o peso do amor. Mas aos poucos, com carinho, mostramos ao mundo o que estamos fazendo aqui 🙂

    • Juliana Silveira 28 de fevereiro de 2019

      Que linda história, Mariana. Só quem vive uma nova família conhece estes pesos. Por isso a importância de termos a coragem de vivenciá-los e compartilha-los, na esperança de um dia termos do mundo, compreensão a estas lindas formas de amar. Um beijo, querida:)

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