Há pelo menos dois anos comecei a escrever sobre as minhas dores oriundas da passagem pelo divórcio. Precisava desabafar em algum lugar. Não era com alguém que aconteceria. Não me sentia livre de verdade para falar. Existia ainda uma prisão da palavra em mim, do social, do externo. Algo com o qual precisava lidar, lá dentro. Talvez, não pronta ainda para o que poderia retornar do que saísse de mim. Insuficiente para debater controvérsias do que em mim não vivia mais e dos meus encaminhamentos a partir disso.

Talvez por conta da culpa por ter decidido por aquele fim de ciclo, talvez pela falta de lido ainda quanto a quebra da minha ilusão de casamento, de família, não sei. Então, só me sentia capaz de escrever naquele momento. Quando sentava eu e o computador. Nós e os meus pensamentos livres e neutros, tateando aquela cena nova, recém saída da escuridão. Exposta a uma clareza quase assustadora. Quase capaz de cegar pela sua agressiva verdade e realidade.

E ali, duas coisas me motivavam, ao mesmo tempo que eram as que mais me assustavam naquela vida nova. A primeira se tratava do tamanho antes inestimado da dor e dos problemas que envolviam aquela decisão, cheia de promissórias e efeitos colaterais, que chegavam a cada dia através das dificuldades minhas e dos meus filhos, do nosso meio e das negociações que agora envolviam as nossas vidas. No social, no financeiro, e com o pai, no dia a dia do compartilhamento. Mas principalmente na forma hostil com a qual fui recebida na minha nova vida, após a escolha pelo divórcio.

Não achava justo me sentir daquela forma em um momento de tanta dor. Que envolvia um recomeço para mim e para os meus filhos.

Sei que em parte eu mesma me sentia um corpo estranho. Afinal, o divórcio carrega toda uma carga cultural relacionada ao fracasso, a infelicidade, a uma história problemática para todas as suas vítimas, que nos veste também com uma carapaça. Como que contagiadas por uma doença com sequelas, a serem administradas para o resto da jornada. Pois dali para frente a nossa história sempre exigiria explicações quanto a sua composição. Coisas do tipo, onde está o seu marido? Não tem, eu respondia desnuda. Você é muito parecida com o seu pai! Ouvia a minha filha quanto à referência à semelhança com o padrasto, mais tarde, seu pai afetivo, nos colocando sempre em uma saia justa. Ou na porta da sala da escola, quando meus filhos tinham que explicar que aquele “tio” não é o irmão do pai ou da mãe, mas sim, o seu pai do coração.

Mas enfim, motivada por dores, desconfortos e inconformidades, comecei a escrever como quem desejava romper limites, muros de contenção. Como explodir com uma represa, quebrar um aquário de dentro para fora ou rasgar as roupas caretas daquelas que apertam, engessam. Precisava escrever. Drenar aquilo tudo. Ou adoeceria com os meus pensamentos.

Tudo o que eu precisava era de carinho, na verdade. Que viesse do meu universo, do mundo que eu conhecia. De quem nos assistia ainda em meio aos tijolos derrubados. Nós três. Mas o mundo ainda não sabia o que fazer com aquilo, com aquela cena. Ainda não sabe. Então, frente à sua apatia, deitei e rolei na escrita. Afinal, não tinha muito a perder e, naquele desabafo, talvez, só a ganhar. Na minha saúde física e mental.

Alguma semelhança aí? Você que passou por esse desenlace?

Bom, aqui cabe colocar que a minha expectativa era menos que nula com as minhas escritas. Ou seja, negativa. Estava pronta para pedras e tomates, pode acreditar. Mesmo protegendo os meus filhos, ali, além deles, eu protegia apenas a minha dignidade. E a única coisa que eu esperava ali era senti-la viva. Para que eu pudesse estar inteira para reconstruir as nossas vidas.

Só que quero falar para você sobre carinho. Aquele genuíno, humano, amoroso, empático. Aquele gratuito. Que passei a receber a cada texto. As curtidas tímidas de algumas, de alguns, aos comentários reflexivos, empunhando movimento, coragem de olhar e o compartilhamento. Tão peculiar a nós das novas famílias. E ali, em cada publicação, começou a nascer o carinho. Aquele que eu esperava, em outra cena, mas que floresceu de textos ácidos, de desabafos, do improvável.

Eis que, após uma oportunidade bacana que aconteceu por indicação de um amigo, sobre um dos meus textos, tive a minha primeira publicação no jornal Zero Hora. Um jornal tradicional, gaúcho, que serve a todos mas principalmente aos porto-alegrenses. E na cidade onde me vi uma mulher separada com dois filhos, na qual voltei a construir vida, a namorar, na qual casei e gerei minha terceira filha, e na qual nasceu a minha escrita, vi estampada em uma coluna do caderno “Opinião” de uma sexta-feira, a minha primeira publicação em meio tradicional. Impresso.

Falando do status de separada.

Desse que não é mais meu mas um dia foi. E que surpreende as pessoas em seu momento mais frágil na vida. Quando precisam recomeçar, muitas vezes com filhos. E que ao invés de colocadas na estaca zero, para a construção de um novo mundo, já iniciam arrastando correntes, sendo nominadas de “pessoas divorciadas”, separadas, ou poderia dizer, um pedaço de algo.

Mas ali, naquela sexta-feira de agosto, um pedaço visto. Por milhares de outras pessoas. Em meio a tantos outros assuntos importantes, que falam da vida, da gente.

E ali, recebi carinho. Inesperado. Comovido. Companheiro. Aquele que eu não achei que pudesse achar no meu “saco de gato” de pensamentos e do que eu não me conformava. Vi a emoção de amigas e amigos queridos, dos meus pais orgulhosos, do meu marido e dos meus filhos. De pessoas que curtem falar sobre essa passagem da vida e acolhê-la. Um reconhecimento afetuoso quanto a importância que ganhou a minha dor vivida, tão igual a sua e a do outro logo ali.

Essa dor camuflada, tantas vezes tratada com trivialidade, com banalidade, por conta da imensidão de casais que vivem esse fim, quando na verdade, representa, na sua essência, a morte em vida.

Enfim, fui presenteada com uma amorosidade enorme. Com carinho. Sem tamanho. E para não agradecer de novo, como tanto fiz a cada um que vibrou por ver falado o assuntos do divórcio, do recomeço e das novas famílias no jornal, digo apenas que senti a energia de quem foi feliz se vendo naquela história. Sinto ela até agora. E é bom demais que teremos mais um lugar para nos encontrarmos no apoio, na afeição, e para falarmos juntos dos desafios dessa jornada.

Quem sabe gera mais carinho? Falo desse, que a gente precisa…

Aqui, chegou demais:)

Comentários

  • Carolina Job 3 de setembro de 2019

    Oi Juliana! Perfeito! Teus texto são um carinho teu, para todas nós divorciadas, que passamos por este luto. Como tudo na vida, cada um sente as situações de forma diferente, com base em seus valores, princípios, nas experiências de vida, nos exemplos que recebeu….e vejo que não é tão sofrido para todos (não que sofrimento seja algo a ser medido), felizes os que enfrentam melhor, os que recebem mais carinho, os que ultrapassam esta fase de maneira mais leve…não é o meu caso e ler tuas crônicas, me identificar muito com as tuas palavras é um super acalento! Muito obrigada! Parabéns por este trabalho cheio de amor e carinho! Bjs Carol

    • Juliana Silveira 4 de setembro de 2019

      Que lindo Carol… que bom saber que te sentes assim, amparada, e que de alguma forma essa conversa em forma de texto te acarinha. Obrigada por me retornar com tanto apreço, com tanto amor:) Nossas conversas e o que dividimos aqui são de grande valor para mim. Beijos querida!!

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