Sim, se trata de presente ganho que colocamos no armário, que guardamos para uso em um tal de “momento especial”. E sim, se trata do momento presente colocado no armário, como se pudéssemos congela-lo para usufruto no depois.

Quem nunca? Quem não, quase sempre? Pega aquele sabonete da Le Lis Blanc e o deixa de enfeite no balcão do banheiro? Aquele charuto cubano, que eu, no caso, adoro, e que fica no bar da casa, junto a outros guardados e enfeites para um dia “D”? Ou aquele licor português o qual deixamos na cristaleira para um brinde realmente merecedor do seu gosto forte e aveludado, e que nunca chega?

Certo dia, cheguei na casa dos meus pais durante uma arrumação no bar, na qual ambos constataram tristes que a maioria dos whiskys da sua coleção estavam estragados. Impossibilitados para consumo. E ali fiquei pensando na intenção, lá atrás, que tiveram de guardar, todas aquelas garrafas bonitas juntas, como em um altar, até que a vida justificasse o usufruto daquele prazer. Como não sou dada a impulsos, guardei aquela cena para reflexão. Mexeu no meu “guarda roupas”  interno, e me pus a questionar esse comportamento de guardar as coisas, os presentes, e que sempre foi tão meu.

No meu primeiro casamento tinha essa relação com a minha cristaleira. Quase não usava os cristais com medo que quebrá-los. Quando bebia um vinho ou uma espumante, minhas bebidas prediletas, usava sempre a mesma, como se aquela fosse a taça de pouca sorte, escolhida para me servir e, eventualmente, ser quebrada. As outras não. Ficavam expostas, lindas, como que em uma vitrine cara e de pouco ou nada de acesso. Assim eu era com as roupas e com a vida, de certa forma. Deixava o prazer para mais tarde. Primeiro vinha o esforço, o compromisso duro e o uso dos copos de vidro para então merecer o pote do final do arco-íris. Que aqui lê-se taças de cristal, roupas, vestidos caros, maquiagens importados e até sabonetes.

Até aí parece óbvio que este não é um caminho sadio. Mas precisei viver os efeitos da sobrevida de uma vida assim. Do depois que não chega, ou chega vazio, sem merecimento de nada daquilo. Ou, que simplesmente, tira o sentido das coisas. O valor daqueles pequenos tesouros guardados, que, lá na frente, ao provados, perderam seu encantamento.

Na mudança, para a minha vida nova pós-divórcio, havia roupas das crianças com etiquetas e que não serviam mais. Havia vestidos novos e comidos por traças ou manchados pelo mofo peculiar das casas da zona sul da cidade de Porto Alegre. E aqueles itens não tiveram seu momento de glória nunca. Nem eu. Nem a vida que por algum tempo toquei assim. Cheia de ilusão e pouca vivência relaxada, sem culpa, com pouco usufruto, pouca intensidade e nada de gratidão.

É como me sinto a respeito quando lembro. Das minhas coisas, dos meus presentes e da forma como coloquei partes da minha vida na prateleira.

Mudei para um apartamento com um terço do que eu tinha e muita vontade de sentir cada parte minha e do que levei. Está aí uma boa forma de recomeçar. Reconhecendo o que se tem, sendo grato e dando como contrapartida vida em troca. Usando com amor e presença o que é me dado de presente na minha jornada. Usando prateleiras apenas como transporte, que leva coisas e pessoas de mim para mim, dos que me querem bem para mim e para a minha família. E isso realmente mudou o meu olhar sobre as coisas e as pessoas. Sobre o presente que é estar aqui. Ter filhos, um amor, uma casa, minhas coisas, enfim, o que me faz feliz agora. Sem garantias. Pois ausente do controle quanto à vida, seu fluxo, traças e acidentes domésticos e afetivos, só o que eu tenho de valor é o presente. O agora.

Pois bem. Essa semana, Entrando no banho, mirei um sabonete no balcão do meu banheiro que me chamou atenção. E me dei conta de que o percebo nas minhas vistas há pelo menos dez anos. Um sabonete de uma marca bacana, ganho de aniversário de trinta anos de uma pessoa que eu adoro. Não o usei. Não queria que o presente dessa amiga acabasse, nem me achei merecedora do uso de um item tão caro no meu banho diário. Olha que loucura!

Na mesma hora corri para o balcão, retirei o papel o rasgando rapidamente, em um desejo súbito de sentir seu perfume aprisionado por tantos anos naquela caixinha redonda. E o levei para o banho comigo. Ele e a lembrança daquela amiga que hoje pouco tenho contato. Ele e o seu perfume agora engraçado, e que não acho ser o original. Ele e a maciez que conheci ao colocá-lo em contato com a água e proporcionar a mim um banho especial. Cheio de vida. E ali, convidei meus filhos para conhecerem a sensação. Todos adoraram o nosso sabonete, de cheiro estranho e que acabará em poucos dias… Aquele que dividimos, usufruindo de sua vida curta. Mas que nos demos de presente. Compartilhamos. Como faço hoje com copos de cristal e charutos cubanos. Como faço com Leandro, Joana, Joaquim e Antonella.

Como se fosse a última vez. Merecedores uns dos outros e daquele presente que recebemos quando nos encontramos aqui. Neste momento. E que só terá valor se percebido, sentido e agradecido. E que só terá amanhã se alimentado e vivido hoje. No presente. Este que está no meio da minha sala, sendo gasto até o seu fim, quando o próximo presente começar.

Onde está o seu agora? Espero que em suas mãos e no seu coração, agora.

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