Me peguei a observar, em um bar, neste domingo à noite, enquanto participava de uma reunião de trabalho, uma moça a acompanhar a banda com os olhos. Acanhada, não saiu da cadeira enquanto as amigas levantavam para dançar a música da vez.

Ela não. Ficava ali, só olhando.

A assisti de longe. Era uma moça sobre peso, com a autoestima visivelmente abatida. Seus braços abraçavam seu abdômen, seus seios, como se quisessem sucumbi-los, fazê-los desaparecer ali. Seu corpo visivelmente a continha. A sufocava ao mesmo tempo em que a protegia de tudo lá fora. Do bem, do mal, das pessoas e da música.

Não acho que valham padrões de beleza nem nada disso. Aqui falo de valor mesmo, daquele valioso, que realmente importa. Não acho que valham. Pois os padrões de fato existem, mas são invenções de alguém que podem fazer sentido para a gente ou não. Mas estabelecido por alguém, mais esperto ou rápido que nós, munido dos seus argumentos e crenças, e que criou uma referência primeiro que todo o mundo, ou melhor. Mas são só padrões, que pesam diferente para cada um.

Eu fomento nas minhas reflexões o espaço para o que se é e o que vier. Do jeito que for, desde que de dentro. Desde que livre e feliz com isso. Desde que bem, contente com o que se é e se tem. Mas não há como negar que a gente muitas vezes não se sente parte quando tudo leva para outro lado, outro padrão. Afinal somos seres organizados em comunidade. E não se sentir parte de alguma coisa é parte de ser diferente. Por isso estilos, tribos, e por aí vai.

Nunca pensei muito nisso, mas é assim que tudo se parece. Lugares ecléticos só são agradáveis quando realmente livres. Quando o outro, ao lado, beira a importância nenhuma, a ponto de cada um viver a sua, e está tudo certo. Mas a realidade é que ainda nos dividimos em grupos sim, de pessoas que olham para os lados. Frequentamos lugares e vestimos coisas sobre o nosso corpo, que falam sobre quem somos e o que acreditamos, publicamente, o que encaminha naturalmente uma tendência e um ajuntamento de gente parecida. Gostamos e seguimos aquelas que usam o que achamos bonito, falam do que gostamos, viajam para onde iríamos. É assim que é na maioria das vezes. Quase sempre que olho a vida por aí. O que pode  se chamar de afinidade, sintonia ou encontro de interesses.

Voltando ao bar, as meninas bonitas que dançavam sorridentes em frente ao palco eram voluptuosas magras, de dentes brancos e cintura fina. Os peitos eram grandes e vistosos. E nelas possivelmente habitavam questões e inseguranças que a gente não podia reconhecer ali. Mas isso não importava. E sim o pacote todo exposto ali, e que assustava a moça que morava no corpo diferente. Aquela ali a quem eu observava. Que visivelmente não se sentia bem onde estava. Não se divertia. Só olhava a banda tocar.

Não podemos negar. É assim que é, não é? E quando não nos sentimos parte, nos sentimos fora.

Que louco isso.

Quem nunca se sentiu nesse corpo? Nesse que não acolhe quem desejamos ser, que serve de âncora para um barco que na verdade só quer navegar livre, escolhendo sua rota, seus acabamentos, sua cor, nome ou velas?

Senti uma empatia incrível pelo que eu estava vendo nela. Parei ali, há três mesas da moça, e fiquei hipnotizada, observando aquela sensação dela, que eu podia sentir a metros de distância. Tão familiar para mim.

Passei a vida não me sentindo confortável no meu próprio corpo. A vida lamentando o meu cabelo crespo, as minhas pernas mais grossas, o meu quadril largo, as minhas sobrancelhas fartas e o meu busto pequeno. A vida achando meu rosto grande, por ser quadrado, e por isso, aparentemente cheio. Uma vida em mesas daqui e dali, nas quais, mesmo por alguns momentos, passei olhando a banda tocar em um corpo que não era lar amigo para mim. Sempre crítica e dona de uma baixa autoestima que me convencia o tempo todo de que eu precisava ser boa em muitas coisas para merecer dançar. Para merecer estar em frente ao palco, livre e sem vergonha. Ou em uma vaga de trabalho bacana, ou com um amor completo e de verdade, ou como uma boa mãe.

Estou trazendo essa questão, pois não acho que ela seja definida pelo externo, apesar dos grupos e padrões que naturalmente, ou nem tanto, a nossa sociedade apresenta por aí.

Mas ela é definida pelo modo como a gente se sente frente a tudo isso.

Vítimas por não termos vindo com cabelos dourados, fartos e domados, com um corpo proporcional e tonificado, com um grande talento que surpreende a todos, ou com sorte. Sentados nas cadeiras de bar só a olhar a festa. De longe e sem alegria. Como que convencidos de que é assim mesmo que é. Bom para alguns é ruim para outros. Para a gente, no caso.

Acreditar que não é possível mudar é a pior das crenças, a maior das doenças. É assim que é para mim. Em minha opinião. A doença da ingratidão, da falta de fé e de ação. Da falta de movimento sobre o que não está bom, nem nos faz feliz. Sobre a vida que é só nossa. E que pode ser transformada por uma decisão, um posicionamento, que só vive e acontece fora, se dentro. Se consciente, e se livre. Se generoso. Se com amor.

E que muitas vezes, como assisti naquela cena, naquela moça, dorme sob as amarras de uma camisa de força que contém uma alma desencorajada e frágil, que acredita ser indigna de algo melhor, pleno e feliz.

Há alguns anos vim transformando o que eu não gostava em mim no que eu gosto. Criei meus moldes, aqueles que transmitiriam ao mundo exatamente quem eu sou dentro, para que assim, transbordassem para fora de mim. Dos meus cabelos as minhas opiniões. Mudei de tom, de peso e de profissão. Mudei de olhar.

E não o fiz para que fosse bom para você ou para o vizinho. Fiz e refiz até que fizessem sentido para mim. Até que eu me enfrentasse e me sentisse potente e encorajada para levantar da mesa e dançar do meu jeito. Sem me cobrir com os meus próprios braços. Para convidar o meu parceiro para um arrasta pé cafona, ou mais uma taça de vinho. Ou para pegar um microfone e falar do modo como eu entendo as coisas, sem políticas ou adequações. Só pelo diálogo, pela conversa. Ou para escrever e publicar em um blog a realidade que vivo no meu corpo de mulher mãe, e na minha nova família.

Foi assim, experimentando, que soltei braços e pernas e levantei das cadeiras da vida. Não convencida, indisposta, inconformada. No dia em que deixei de sentir que aquela era a minha sorte. Nem boa nem ruim, mas diferente de mim.

Então ali, naquele bar de Santa Maria, precisei me segurar. Para não levantar, atropelar, abraçar, confortar e estimular aquela tão igual a mim, a nós. Quis sacudir, movimentá-la. Mas não fiz nada. Não consegui me mexer. Só pude olhar.

Pois quaisquer que fossem elas, a vontade e o sonho, não eram meus. Nem produto do meu olhar, alegria e prazer. Estes precisavam ser dela. Eram seu direito e dever consigo mesma. Não meus.

Então calei e escrevi. Na mesa do bar mesmo.

Um pouco daquilo dela, que senti em mim, e que tanto nos fazem visitas na vida… Quem nunca?

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