Para falar de vida há de se falar de morte. É na eminência dela, desse sopro que nos leva daqui, que acredito que abastecemos a vida na gente e da gente. É quando se reconhece o essencial. Afinal, receia a norte que tem a perder. Tem vida com valor, afetos, compartilhamento, construções, e por isso, tem do quê sentir falta.

Ela acordou com uma dor na perna. Não parecia nada, não queria que fosse, afinal. E por isso quis se levantar e iniciar o dia ao lado da sua família, como todos os outros. Só que era alguma coisa, e com uma parada fulminante no seu coração, de quarenta e sete anos, se foi daqui. Sem dizer muito, apenas olhando nos olhos dos seus. Mais rápido do que pudessem acompanhar…

Esse foi o fim da historia que nos foi contada pela família de uma amiga querida, dinda, junto comigo, da nossa afilhada em comum. Uma mulher simples, que tive o privilégio de conhecer. Daquelas humildes, humanas, daquelas pessoas que a gente conhece e pensa: existe ainda gente assim?

Certa vez, correu em um galinheiro a brincar com o meu Joaquim e pegar ovos, em um sitio em Agudo, interior do Estado, onde morava. Depois da folia, me ajudou a lavar os seus pezinhos pequenos e imundos! Lavar os pés de uma pessoa é de uma afetividade sem fim… Então, eu já era fã dela. Dava para ver o quanto adorava crianças, e talvez por isso, de cara, elas também a adoravam.

Este foi mais um fim daqueles que faz a gente se perguntar…

Primeiro, porque gente tão boa se vai tão cedo?

Banalizamos as mortes, de certa forma, em tempos de pandemia, quando morrem centenas, milhares por dia, gente que no “monte” é número, mas nas suas casas, insubstituíveis afetos, e saudade que dói. Mas não foi ele quem a levou, o vírus da “moda”. Mas uma das outras dores da vida, não menos importante e sorrateira…

A outra pergunta que vem à mente é: e se fosse a gente, a se despedir, no lugar de quem vai, ou no de quem fica, o que faria falta naquela hora? Quero dizer, o que faltou fazer, dizer ou valorizar, antes de nos despedirmos de quem se ama?

Duro isso quando vivemos como se fossemos eternos. Passei uma viagem de cinco horas até Santa Maria me perguntando o que haveria de faltar hoje. Se dei todos os abraços, se disse que amo o suficiente, se me aconcheguei nos braços dos meus, namorei, garanti, dei certeza do afeto que sinto e vivi a segurança dos amores verdadeiros…

Em tempos de mortes, estamos olhando para o que realmente vai faltar no final? Deste pelo qual, quase sempre, somos surpreendidos? Se não há tempo para se preparar, estamos fazendo o possível para sermos eficientes, nos sentindo suficientes em um momento de despedida? Para irmos em paz com o que fomos e fizemos até o dia “D”?

Ando preocupada com o futuro próximo, com as contas, com a segurança dos meus três filhos, com minha, do meu parceiro, dos meus pais, irmãs, familiares e amigos. Ando buscando os olhos preocupados da gente, até os meus próprios, quando por vezes não me reconheço no espelho. O cansaço e a eventual falta de fé e otimismo andam batendo nas nossas portas, não é mesmo? Aqui também tem acontecido. E ando me agarrando na profundidade que se esconde no raso medo da crise financeira, da insuficiência econômica, da falta das bases que o mundo capitalista pouco sútil nos seduziu, à desejar e depender.

Venho tentando lembrar de quando faltou e fazia pouca falta o conforto, já que o afeto bastava. E ele é tanto!

E de repente, não paro de agradecer aos meus pais pelo caminho simples que fizemos na vida, sem faltar nada quando faltava um tanto de coisas. E não paro de pensar que é este valor que gostaria de realmente deixar aos meus filhos e viver essencialmente em mim. Talvez a ideia de que tudo que não está dentro da gente vem e vai na vida, torne as coisas mais simples de entender. É energia e ela transita. Às vezes é abundante, outras escassa, mas rola por fora, no externo. Talvez se construíssemos nossos tesouros, nossos maiores impérios, dentro da gente e das nossas relações de amor, jamais poderíamos ser roubados. Nem por uma crise financeira ou uma pandemia. Pois teríamos momentos da gente, vividos e sentidos, e assim, alimentaríamos a nossa humanidade.

Essa é a maior das riquezas, a que mais faz feliz, acredito eu.

Então, se eu fosse retirada daqui de surpresa, de repente, dos meus, queria deixá-los livres de mim. Queria estar neles, mas não nas pernas e braços, não os aprisionando na dependência do meu viver. Queria morar nos momentos, no coração e nas lembranças pelo meu afeto abundante. Pelo meu exagero, meu excesso.  Não pelo que proporcionei ter, mas sentir. Porque quando a gente cresce, o ter tido não importa, mas o ter sentido sim.

Ou você guarda da vida e da infância algum bem material adquirido?

Sinto muito pela Leila. Que se foi em um piscar. Sinto pelos seus amores e admiradores que ficaram. Para os que identificaram sua simplicidade profundamente afetiva na estada aqui, e a valorizaram.

Sinto também gratidão pela vida simples que aprendi de pai e mãe, e sobre o que é realmente essencial, na semana em que meu pai aniversaria. Minhas lembranças mais afetivas e vivas são dos pratos de comida divididos com a minha irmã do meio, de arroz, feijão e ovo…

E por todos nós, sinto muito desejo e esperança de que possamos encontrar os olhos e o coração do outro que amamos, em cada um dos nossos dias. Que possamos criar vida no sentir, sermos perpétuos no coração, sem deixar para amanhã. Pois não há valor maior para levarmos dessa vida, nem maior alivio, do que estar no presente, inteiros de vida e de afeto. Nisso eu acredito, de verdade.

Se formos embora hoje, de repente, sem mais nem menos, com tempo de nos despedirmos ou nenhum tempo, que seja cheios do agora. De entrega e leveza, de amor profundo, de verdade nas palavras e da vulnerabilidade tão necessária para amar, a fim de que não restem arrependimentos.

O resto é o resto. Viveremos do jeito possível, tenho certeza que acharemos meio. Outros acharam na história da humanidade. Mas sem amor, ah… nada seríamos, nada seremos.

Então, se o seu ultimo dia fosse hoje, ou o de alguém que você ama, pergunto… Você está fazendo tudo?

Desejo que sim.

E se morte e vida são faces da mesma moeda, e um assunto inevitável no agora, que seja falado para construir melhores presentes.

Pois do futuro, só Deus sabe:)

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