Você deve estar se perguntando o porquê de eu valorizá-lo como o mais importante das nossas vidas quando, aparentemente, se trata só de mais um Natal. Logo das “nossas vidas”, tão distintas nas suas peculiaridades, mas que, neste ano, por tantos motivos, terão festas de final de ano constituídas de algo comum. De um “cantinho do pensamento” que mexeu nas coisas, no modo como elas eram. Que nos pôs no mesmo barco e, se não, na mesma tempestade. Colocando-nos em comunhão como nunca antes.

O enfrentamento da realidade dos fatos, da saudade, do medo da morte, da perda de quem amamos e de desconhecidos que nos tocaram à distância, da vulnerabilidade do nosso “patrimônio”, do nosso trabalho, da nossa vida, e até, do nosso intelecto, quando vivemos algo que evidencia o que há de mais genuíno no ser humano e seus riscos naturais na vida, tornam este Natal talvez o mais relevante de todos os tempos no que tange a nossa constituição, consciência e civilidade. Algo que jamais vivemos antes. Que despertou o desconhecido na gente, nas nossas casas, no nosso entendimento.

Outro dia assisti a um vídeo do Piangers que falava da origem das civilizações, e sob a ótica de uma antropóloga a qual ele havia encontrado com as filhas em suas pesquisas de escola, citou o que na opinião dela determinava o grau de civilização de uma sociedade. O primeiro sinal de civilidade se tratava do cuidado. Aquele que fazia com que pessoas salvassem outras “iguais”, vítimas de quedas, ato simbolizado na cicatrização de um fêmur quebrado nos tempos antigos, e que, até então, levava a morte. Até o dia que uma pessoa cuidou da outra.

A gente se torna civilizado quando exerce o cuidado, quando se dá conta de que não estamos sozinhos no mundo, que precisamos nos esforçar para cuidar de quem está ao nosso lado, e que vai além da família. Quando estamos atentos e dedicados aos laços afetivos, ao amparo, à dor de quem está à nossa volta. Ajudando as pessoas a sobreviverem às dificuldades dos nossos tempos como lá no passado pessoas de fêmur quebrado foram ajudadas, e assim, deixaram de morrer. De uma forma ou de outra, afinal as mortes podem ser tantas!

Enfim, quando nos enxergamos e nos constituímos grupo, além de si próprios. Não é bonito esse olhar sobre a nossa organização civil e humana?

Então pensei de que forma isso dá tanto sentido a este ano, quando adoecemos de tantas maneiras, principalmente pela consciência. Do que fomos obrigados a olhar já que a coisa toda “desfilou” sobre nós, nas nossas “caras”.

Achei que sabia exatamente do que eu precisava e do que eu queria na vida. O ano de 2020 mexeu com os meus desejos, com a minha vaidade, com a minha maternidade, com a minha jornada. Não quero superar essa pandemia e o que ela trouxe. Desejo atravessa-la. Senti-la. Foi só o que pensei nos últimos meses já que me parece um cavalo encilhado, uma oportunidade de olhar a vida sob outra perspectiva. Quero ouvir o que ela veio me dizer, às vezes aos sussurros, em outras aos berros. De forma ensurdecedora, seja no seu silêncio, aquele que nos isolou, seja pelos seus gritos, na gente e no outro, no meio da sala. Ambos presentes nas nossas casas, nos nossos pensamentos, medos e expectativas. Na nossa busca por compreensão, por reinvenção, pela auto avaliação de quem fomos até que este ano nos abatesse e nos transformasse.

Há quem viveu, em meio a tudo isso, doenças. Perdas. Não só pelo Covid-19, mas maximizadas por ele que nos distanciou tanto. Há quem viveu transformações financeiras que exigiram a revisão de sonhos, de valores, de perspectivas, e até redimensionou a sua importância e o significado de abundancia e escassez. Há quem viveu o divórcio, o fim do amor romântico, a frustração de juntar suas coisas e as suas idealizações e coloca-las embaixo do braço. Fazer o quê? Como se esconder quando estava tudo estampado nas paredes do único lugar no qual estivemos por tantos meses? Pois para muitos o enfrentamento da família que não era mais e que precisava de reforma aconteceu no ano que fechamos com este Natal. Este de reestruturação. De recomeços. Que para muitos fez desmoronar a vida íntima, a dos afetos. Por apresentar a “conta” do tamanho do vazio quando tudo foi colocado na mesa, aquela de comida, de trabalho, de aulas online, pinturas, costura e carteados, desde o dia 16 de março…

E o colo, privado pela pandemia? E o abraço, o barzinho, as amigas, a família, o amparo?

Só entre os seus, o que fortaleceu também os laços mais verdadeiros na família, entre vizinhos, desconhecidos, gente que se importa.

Talvez o Natal mais importante das nossas vidas, e o mais improvável, nos tempos líquidos sobre os quais vínhamos construindo realidade, o seja por conta da sua nudez e pela forma como se vestiu nesse ano de esperança. Talvez o seja pelo tanto de significado que as pessoas, as famílias e o cuidado tiveram neste novo caminhar. Este que nos trouxe ao Natal mais sensíveis, humanos, empáticos, amorosos, conscientes, humildes frente às dificuldades do mundo, mesmo que em doses diferentes em cada um de nós. Que ressignificou o valor do presente, da presença espiritual na vida, da presença das pessoas na nossa história e do que nos é realmente necessário. Amores ou não. Passantes e “ficantes”.  De dentro ou de fora. Coisas e afetos. Desde que de verdade, desde que importantes para a gente, para essas pessoas novas que atravessaram o ano em que a pandemia arrebatou o mundo.

E neste ano, impossível de ignorar o que era ruim, o que não era mais e o que segue sendo, pela força da presença e da ausência de tanto, chegamos ao Natal mais importante das nossas vidas. O da mais pura verdade. Fez sentido agora? Quer terreno melhor para recomeçar a vida?

Ainda lembraremos deste Natal de 2020 como a nossa linha de partida para uma vida mais humana, mas civilizada e mais nossa, condizente com quem realmente nos tornamos. Pois linhas de partida pressupõem novos planos, novas chances, novas escolhas e rotas, novos “sims”… E porque “nãos”?

Um feliz Natal de amor e cuidado para você. Já era hora! Nosso mundo, nossas pessoas, a gente, todo o nosso contexto… vinha precisando. E a ideia do bem? Não andamos mais sozinhos, e isso pode ser uma certeza, além de civilizado. Há cuidado. É só olharmos em volta:)

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