Quando eu era “esposa” no meu primeiro casamento, eu achava que era uma mulher “sabida”. Que tinha aprendido o “caminho da roça” na relação de amor, que era uma mãe zelosa, mas comedida, do tipo “no ponto” quanto à proteção deles frente ao mundo. Pensava que era uma mulher sensível às dores da vida, principalmente de outras mulheres…

De verdade? Acreditava realmente que fazia a minha parte. Que era uma boa amiga para as minhas amigas e que socialmente falando, cumpria o meu papel civil como mulher e mãe. Tive oportunidades incríveis de me relacionar empaticamente com as dores femininas e da vida em família. Minha melhor amiga se divorciou alguns anos antes de mim e, junto dela, presenciei uma realidade dolorida, mas que não deixei me tocar fundo. Talvez por medo, abracei ela mas não a sua dor, a realidade cruel dessa travessia e os seus questionamentos e conflitos. Até hoje me sinto por vezes em débito com ela, mas sob a crença de que fazemos o que podemos naquele momento em que os desafios se apresentam para a gente, e que as armas são as da “mochila” disponível na hora… Então, venho me perdoando por isso.

A dor ensina a gemer, afinal. E pelo caminho mais exigente, preenchi minha mochila do que me faria melhor. Na travessia do meu divórcio e na construção da nossa felicidade no depois, minha, dos meus filhos e do amor que encontrei.

Assisto hoje cenas daquele tempo por aí. Assisto mulheres “sabidas” como eu era. Cheias de verdades, de autodefesa para o que grita por dentro de si e do que assistem no seu entorno, seja pela repetição de uma “moral” introjetada, seja por medo de ser ouvida de verdade na sua opinião ou posicionamento sobre como as coisas realmente são. De ter que dar conta da realidade que sente “esquentar” a pele e a boca do estômago.

Outro dia discuti com uma amiga sobre a realidade do preconceito racial. A pauta era a de que hoje ainda se vê muita gente questionando a importância, base e justificativa desse comportamento histórico estar sendo enfrentado e debatido frequentemente em toda e qualquer cena da vida. Como se fosse um “problema” darmos manchete a tudo que envolve o assunto ou a pessoa possivelmente discriminada. Cheguei a ouvir uma resposta combatendo uma cena de preconceito com o exercício da possibilidade contrária, dando a ideia de que “brancos” estariam ali sendo discriminados, também, quando “negros” são de alguma forma protegidos no seu direito.

É aviltante. Quando, por algum motivo, passamos a fazer parte de um grupo considerado minoria na sua compreensão e no seu direito, e assistimos a diminuição da dor desse “lugar” pela nossa sociedade. Passamos então a entender o que temos constituído na nossa formação, e com a qual seria bom que nos debatêssemos. É quando sentamos de verdade no lugar do outro, que sentimos o que o afeta. É tomando conhecimento da jornada daquela constituição, que entendemos a violência sútil, aquela que não precisa ser proferida, podendo até ser negada, mesmo que presente no ar que respiramos, claramente…

Já ouviu falar de misoginia? Machismo e sexismo, imagino que sim. A questão é que todos fazem parte da nossa história de evolução humana e social. Todos constituem o chão que a gente pisa, o ar que respiramos, as casas onde vivemos, os lugares onde trabalhamos e exercemos a nossa cidadania. Dizer que somos iguais no direito e no “olhar” me parece um negacionismo tão grande quanto dizer que a pandemia é uma “gripezinha”, quando já matou mais de duzentas mil pessoas só no Brasil. Ignorar que mulheres ainda são vítimas de preconceito na arena do lar, no espaço do exercício profissional e nas relações de casamento, por exemplo, não vai nos ajudar. Lembrando que a cadeira de vítima de preconceito não deixa nenhuma mulher livre.

Presencio diariamente relações de casamento tomando o rumo do divórcio, e nesta jornada, mulheres perdendo espaço, perdendo vida, intimidadas. Por homens e por mulheres, acreditem. Desde a convivência na comunidade da qual faziam parte, ao julgamento de sua conduta, seja ela na cadeira de refratária, “desavisada”, seja na de autora do fim, seguimos vulneráveis frente à opinião pública, legal e afetiva, de uma forma muito ampla e profunda. Na perda do juízo justo e equilibrado da partilha daquilo que um dia foi construído junto, com a entrega acordada no seio da família. No julgamento da mãe que, quando quieta, servia bem e que, no exercício do posicionamento e da escolha por outro rumo, deixou de sê-la, tendo a sua maternidade questionada.

A sociedade infelizmente ainda tenta produzir cenas de “família de margarina”, ainda que digam o contrário. Ainda se ignora os anos de escravidão, desmerecendo a luta diária que vivemos por direitos iguais, independentemente de raça. Ainda se elevam os homens viris e provedores e as mulheres acolhedoras e maternais, como se estas não fossem apenas características humanas, mas sim, o que definem estes indivíduos.

Temos estrada longa. E seria bom se pudéssemos dar movimento à mudança desse modelo sem que precisássemos sofrer os estilhaços dessa realidade cruel, no ato das nossas transformações, escolhas e mudanças particulares.

Diferente disso seria sentar e esperar a nossa vez. Aquela que, se não for objeto de enfrentamento e transformação pelo todo, seguirá nos abatendo, solitárias. E então, não adiantará dizer que é injusto. Pois será só a boa e velha realidade.

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