“O pior é que tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe a ‘Família à Osvaldo Aranha’, ‘Família à Rossini’, ‘Família à Belle Munière’ ou ‘família ao Molho Pardo’, em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é ‘à Moda da Casa’. E cada casa gosta de preparar a família à seu jeito.”

Há anos me dedico ao preparo da minha como uma “chef gourmet”. Me “paramentei” com coragem pela consciência da minha responsabilidade em reconstituí-la sempre que afetada ou ofuscada, e pela culpa perante a tudo a que permiti abater a minha, por escolha, quando se deu o meu recomeço, com o rótulo exigente de “reconstrução familiar”…

Ah, tá. Era mais que isso, inocente… Era mais. Assim como a família é.

O mundo é família, o amor é família, a mistura afetiva é família. E no leito isolado do hospital, recebi da vida lá fora a obra “Arroz de Palma”, como um presente amigo de uma “amiga irmã”, para desamarrar as minhas “sensações familiares”. Soltar mordaças, correntes invisíveis presas aos meus pés, que se pensavam livres só porque remontaram o “parquinho familiar” com pai afetivo, filha nova, junção agora de cinco. No medo de faltar, se apresentou para mim a família da vida, além da que tinha como minha. Maior, mais heterogênea ainda e tão valiosa quanto.

Amigos de longe no dia a dia, meu médico e anjo, minhas amigas vizinhas, parentes, de alma, de sangue. A família que um dia foi e a que hoje é por escolha e reforma. Tudo família. Tudo junto quando a vida pediu assim… Muita gente quando eu estava só, quando os meus ficaram sem mim.

As famílias funcionam, minha família funciona à sua moda, Sr. Francisco Azevedo, autor do emocionante “Arroz de Palma”… Acho que até parentes somos, não duvido de mais nada. Com as nossas pitadas particulares, com os nossos dissabores, limites humanos para a fé, para o certo e o errado, para o possível, e para percepções do que é feliz, fazemos família de qualquer forma, do modo que dá e que a coisa se apresenta. A gente questiona o modelo às vezes, frente às “disfuncionalidades” que ele apresenta no dia a dia da vida, e isso tudo nos tornou tão familiares! Suspeito que seja o caso da maioria das pessoas que eu conheço…

Pois não é fácil viver família. Não é fácil viver. Normal essa sensação de trabalho duro quando se dedica diariamente para que as coisas fluam bem, para que não se alimente o caos, o beiço, a tristeza, as diferenças, o enfrentamento do que é do ser humano, e disso se tira, de repente, um “humm” ou outro som de reconhecimento, conexão e prazer. Normal, quando se tenta acertar, quando se busca sentir felicidade…

Só que família boa não é só feliz, vida boa não é. Felicidade precisa de bolo fecal. Família produz de tudo, até isso, e assim, é berço fértil do que é feliz.

Falar que é importante lidar com as tristezas e enfrentá-las com saúde nas nossas travessias afetivas são coisas muito diferentes. Mechem com lugares distintos na gente. Um está no departamento do conhecimento, do planejamento, do saber, e até do idealizar. O outro, no do sentir, em um mar de sensações vivas que não controlamos e que nos pegam de surpresa e de “calças curtas” no ato de decidir o que melhor fazer com isso. O “imperfeito” é rotina do viável. No dia de cabeça mais pesada a mão pesa amarga no toque, a fala pesa na exigência, a cabeça pesa na gestão. Aí, no advento do feliz, tudo parece no lugar ou um milagre fruto de algum merecimento, quem sabe…

O fato é que “funcionar”, ter um sabor bom, que acaricia e acolhe, ou mesmo gera pertencimento na gente, lar, acolhida familiar, vem de um lugar tão livre quanto é o paladar. Com toques sutis ou grosseiros do que é forte e arrebata, e do que é fraco e ensosso. A vida prova por “A mais B” que receita do feliz não se tem e que família somos todos, como diria sabiamente Francisco de Azevedo.

Realizar que nem sempre cheira bem, que nem todos se dão, que os temperos soam diferentes a cada um, que uns não gostam de cebola, outros de salsinha, e muitos do agridoce, e que acidez, amargor e indisposição é acontecimento do momento, do encontro, do íntimo, muito além dos ingredientes, tornou a família a única coisa no mundo com a qual eu não desejo viver sem, assim como não desejo a distância de uma “mesa” de surpreendentes experiências nos afetos, mesmo que em casas diferentes.

Se “Arroz de Palma”, se “Cozinha Prática”, se “Temperos de Família”, se “Chato para Comer” ou “Que maravilha!”, está tudo bem, tanto faz, desde que as misturas aconteçam, sejam experimentadas, trabalhadas… O que importa no final das contas é sentar-se à mesa de coração aberto e com tudo o que se tem e não se tem, com tudo que mudou, com tudo o que se perdeu, se ganhou, se viveu, e servir-se com a oferta da casa, ou da vida, para ser mais justa e abrir a porta para o que ela tem a nos trazer. Lambuzar-se da única força que vi enfrentar a solidão e o desamparo é o meu valor maior. É família para mim. Porque se há um aprendizado na falta, ele está na importância de ser e viver família em toda a sua abundância, possibilidade, formato e oferecimento, “à moda da casa”, à moda do bem viver.

O resto é o resto, e suspeito que nem de verdade seja realmente, quando não desfrutado junto. Na solidão é a família que nos entorna que ascende a luz. Que lembra do que somos feitos, capazes, limitados por nós mesmos e do que é verdade, e não fruto da atrapalhação de um isolamento legítimo, e que em nada tem a ver com o “romance” imputado à solidão ou à solitude, como campanhia que se basta à travessia da vida…

Família é amor… Somos amor. E amor é bom do jeito que for. Basta sentar-se à mesa, e permitir-se vivê-lo até raspar as panelas. Pois como diz meu “parente” Francisco Azevedo, família é prato que quando se acaba jamais se repete. Então, “voilà”!

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