Explicar a dor que dói em um processo de separação é algo difícil de colocar em palavras, assim como é quando perdemos alguém importante para a gente ou descobrimos, por motivo de doença, por exemplo, que a vida é finita. Que gastamos esse tanto de tempo dos nossos dias espiando a vida alheia, criando comparativos prováveis de lugares tão distantes e particulares, definindo “cumes sobre cumes”, metas e objetivos exigentes com a gente, buscando envelhecer com dignidade e, petulantes, com certo ar “jovial” até, e, de alguma forma, simplória e infantil, com o desejo de viver o tal do “felizes para sempre” com as escolhas que fizemos pelo caminho, isentas de revezes… Do tipo que cruza a vida com a faixa de “bem sucedida”, vencedora, gente de sorte.

Não consigo tirar da cabeça cenas do amor longevo em uma varanda grande, com cadeiras de balanço confortáveis e uma vista do pôr do sol. Um chá quente, uma cesta de frutas e uma pequena travessa de prata de biscoitos amanteigados. E de repente, me deparar com a imagem de um carro chegando, crianças sorridentes descendo dele, e adultos aparentemente felizes e autônomos financeiramente logo atrás, todos correndo na direção daquela varanda iluminada do laranja-rosado do final do dia…

Você consegue visualizar?

Os personagens são de uma família que “deu certo”. Um casal de idosos casados há mais de cinquenta anos, filhos adultos bem criados e bem casados, e um bando de netinho sapecas e afetuosos. Afeto é o que não falta nessa cena tão idealizada por nós, nutrida aos “galões” pelas produções “holiwoodianas” belíssimas, para as telas de cinema ou para as redes sociais, e que traduzem o final feliz aquele dos que “deram conta”, dos que “deram certo”, dos que acharam o amor verdadeiro nas suas vidas…

Meus avós tinham uma varanda assim na casa deles do interior… é do lugar que mais sinto falta quando lembro-me da minha infância. Está marcada nas minhas memórias mais afetivas, da mesma forma que a varanda da casa do meu outro “par de avós”, ambos cenários dos nossos momentos mais valiosos em família. Aqueles marcados na infância, quando começamos a sonhar com o que queremos para a nossa própria história. Não é de se surpreender então que essa referência nos remeta a algo tão imensamente feliz.

Lembro-me das conversas de tios e primos, da gaita do meu avô enchendo o ambiente, das saudações de “viva” do meu outro avô ao ter a família toda reunida. Lembro-me dos planejamentos de churrasco, do cardápio do jantar de sábado, da ceia de Natal, dos desfiles beneficentes da minha avó paterna, e das festas do clube e galetos organizados no salão paroquial da igreja da cidade, aquela da praça, em frente ao banco e aos correios, papo recorrente na casa da minha avó materna. Lembro-me da melancia compartilhada com os primos, da batida de banana com cascas de ovos crus do meu tio “malucão”, da ambrosia mexida pela minha avó. Lembro-me dos cigarros passando de mão em mão, do mate, da caipira e do licor de butiá, tão presentes nas minhas memórias de criança.

Lembro-me do meu avô tirando a minha avó para dançar, ali mesmo na varanda, e deixá-la corada em meio às palmas e o alvoroço dos filhos e netos…

Lembranças de infância. O amor ali parecia algo fluido, fácil, escolha óbvia e afortunada. Parecia um golpe de sorte. Quem sabe genética! Afinal quem começou tudo aquilo, os mais “velhos” que podíamos acessar da nossa origem, nos mostravam um caminho cheio de possibilidades felizes, de “tendências” da perpetuação de uma família de casamentos longevos e cheios de amor, dança, planos culinários para refeições abundantes e alegres, e filhos. Tudo parecia simples, bastaria deixarmos a “correnteza do nosso rio” agir, relaxar e flutuar nele.

Foi de lá que construí minha idealização de “varanda em família”, a qual doeu fundo desmanchar e ressignificar quando me divorciei. Receio que foi de lá também que a maioria das mulheres que acompanho e das histórias que conheço de divórcio constituíram essa frustração profunda que dói na alma, como que dizendo “já era a varanda!”, o amor verdadeiro e a família feliz…

Só que a saudade sacana filtra as entrelinhas, e a infância também. Fui crescendo e percebendo que o “feliz” é uma questão bastante particular e de um significado bem peculiar a cada pessoa e a cada conjunto familiar. Referenciado nas metas definidas para a vida por cada indivíduo, pelas escolhas pautadas nos seus próprios valores, e pelo tanto de “lidos” e “concessões” feitas por cada um naqueles acordos estruturais e afetivos.

Como já disse o autor Francisco de Azevedo, família é prato difícil de preparar. Olhando bem de perto, se percebe o trabalho que envolve a dinâmica das “varandas”. Puxando pela minha memória, agora desnuda e corajosa, pude perceber, ao olhar lá atrás, com a minha luneta amadurecida pelo tempo, momentos hostis, desgastes conjugais, negociações que acomodassem aqueles formatos expostos na nossa principal área de lazer, tristezas, problemas com filhos e outras preocupações da vida adulta. Pude perceber quando me tornei uma, capaz de olhar para traz não mais como uma criança.

Aquelas cenas eram reais, mas eram mais. Eram vivas, tinham disfunções e até registraram suas superações e separações. Casamentos terminaram, outros perseveraram, pais perderam filhos, filhos perderam pais, tudo com seus custos, acomodados ou negociados a dois ou mais, por mais… Por si ou pelos outros. Não se ganha tudo, não é? Nem se ganha sempre. Então a felicidade possível, suficiente a cada um ou insuficiente, mas compensada ao seu cada qual, é receita íntima, e só quem vive as suas ardências na pele sabe onde e porque “amarra o seu bode” e o aquieta, ali na varanda, ou o deixa solto para recomeçar livre, mas “solto do comboio”.

Esse é o momento da vida da gente no qual a varanda soa como a maior joia perdida. Das dores mais exigentes que um divórcio pode gerar. Das mais íntimas, profundas e silenciosas. Quando a idealização da felicidade da “família para sempre” se derrete ao chão. Quando aquele sonho de infância se torna realmente algo “infantil”, improvável, para não dizer impossível, já que na imagem idealizada aquela família vencia no tempo e no amor permanecendo unida. Como se uma palavra estivesse condicionada a outra.

Então me parece que talvez o jeito seja crescer… Afinal, não é o amor que vence, mas as pessoas envolvidas que avaliam perdas e ganhos e o que ainda faz sentido, pelo que ainda vale trabalhar. Entre o que fere, eventualmente abusa, e o que entrega o suficiente para aquietar. Entre o seu próprio desejo de investimento, e o do outro.

A gente cresce nas grandes dores e é nelas que amadurecemos, acolhemos a nossa criança sonhadora e a superamos. Guardamos ela com a gente, quentinha e amparada, mas pequenina, dentro, sob a proteção do adulto que somos hoje, capazes de enxergar as nuances, os olhares e as exigências das varandas aparentemente “só” felizes.

O “feliz” tem tantos significados… Tantos formatos, tantos tipos de amor, jeitos de amar, tantos objetos dele, tantos ciclos…

Se eu idealizasse a minha varanda hoje, ela não seria mais uma varanda. Tenho outros lugares prediletos na casa, acho. Também teriam livros, teriam histórias, teriam notícias vindas de longe, de perto… Teriam escolhas feitas, heterogêneas, estranhas, difíceis até de engolir. Teria mais vida do que aquela “varanda hollywoodana”.

Meu coração com certeza pulsaria mais alto e mais rápido entre a minha genuína ansiedade e inquietude, e a paz de quem entregou tudo no que viveu, principalmente a si mesma. Que formou a família possível e neste ato, libertou a quem veio junto para as suas novas e próprias construções, do jeito que cair bem. Quando me permiti experimentar a vida, degustar, escrever. E nesse lugar gostoso onde desejo me sentar com uma taça de vinho, um pequeno pote de amendoins, e uma tábua de queijo “brie” com geléia de figos e nozes, me imagino falando das histórias incríveis de gente que se movimentou na minha frente e que me movimentou.

Talvez tenha uma lareira… Mas tudo bem se não tiver. Assim como me despedi da “varanda dos sonhos”, aquela me excluía de ter o que é feliz, convido você a deixa-la para trás também, criando para a sua vida um espaço possível, mais feito de histórias vividas, trabalhadas, e não desperdiçadas, do que formatos que tiram de você o movimento e a busca que te faz viva.

 Mas por favor, sem idealizações:)

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