“Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior, ouviu falar? Pois acabei essa leitura deliciosa ontem. Ando mais viciada do que nunca pela companhia de um livro embaixo do braço, do guarda-sol, com vinho, com café, com ou sem as crianças, enquanto o marido assiste a série dele no Netflix, enfim, do jeito que for. Ando “comendo” um por semana, curiosa por histórias que não sejam as minhas… Até como forma de entendê-las melhor, buscar abrigo na de outras, mesmo que em ficção. Afinal a arte imita a vida e nada mais carinhoso com a gente mesma do que se deixar invadir pelos amores, caos, dramas e pela felicidade que se dá na vida de outros como forma de normalizar as coisas. E eu estava, ou diria “estou” precisando disso.

Abri o ano “mais para dentro do que para fora”, sabe? Sem a vontade da festa e com muita sede de vinho e livros. E na minha introspeção, ouvir as histórias lidas silenciosamente pelos meus olhos famintos, sedentos por percepções diferentes e particulares da vida, pelo prisma de todo e qualquer ser humano disposto a escrever, tem me feito um bem danado, como faria um prato de arroz, feijão e ovo para qualquer um na hora da fome.  Tem coisa melhor? Comida para o corpo e para a alma?

O livro retrata a história exigente e íntima de mulheres. É contada do lugar de crianças, de filhas, de mães, de esposas, de roceiras. Retrata o caminho social exigente da comunidade negra do sertão da Bahia, do tempo pós-escravidão, da sobrevida das famílias em um ambiente que vive entre a aridez das secas e as enchentes dos rios, entre o excesso de trabalho e a fome, sustentada por suas crenças espirituais, base que as mantinham andando. Realçando a realidade principalmente das mulheres em um contexto cultural oposto ao que rege as batalhas do feminino que conhecemos tão bem hoje. Mulheres fortes e expostas às mais cruéis intempéries e realidades… Sem vez, quase sem escolha, analfabetas, mães jovens e de filhos numerosos. Mães órfãs por todos os seus lados, dadas as condições precárias de saúde, de acompanhamento, de pré-natal, de matrimônio.

Só que não é disso que eu gostaria de falar especificamente, mesmo sucumbindo a urgência de citar uma realidade que ainda é, de certa forma, nesses lugares invisíveis do Brasil. Essa foi só uma linha geral no convite à leitura que vale a pena…  Quero contar da “Salu”, mãe das personagens principais do livro e esposa do curandeiro, e do quanto ela me tocou com a sua história. Com a sua missão de “mãe de pegação” das crianças da comunidade às quais trouxe ao mundo como parteira. Ela não dava a vida, deu apenas aos seus, mas trazia ao mundo “deles” um tanto de gente. Função não remunerada e de um pertencimento incrível quando se trata de uma comunidade que conta apenas com seus integrantes. Uma aula de solidariedade e de senso coletivo, o famoso “juntos somos mais fortes”.

Pensando no quanto nos sentimos parte daquilo ao qual damos vida, me vi mãe de tudo o que toquei e deixei nascer. Uma sensação de ser parte de mais do que é efetivamente meu pelo simples fato de ter me envolvido diretamente na emoção daquela gestação e nascimento. De tudo o que nasceu de mim ou de quem eu pude assessorar no processo de dar vida. Pessoas, sentimentos, projetos e livros. E ontem, mesmo dia em que virei a página final dessa leitura, em assistência à minha profunda amiga e vizinha Paula Britto, que por motivo de viagem demandou que eu tratasse da sua correspondência, recebi as caixas do novo livro dela. Da obra na qual ela vem trabalhando nos últimos meses e que tive o privilégio de acompanhar de perto por conta da nossa amizade e cumplicidade.

Fui a “parteira”. Recebi e abri a caixa da editora, já conhecida minha, e que pariu os meus livros, seduzida pela vida que ela carregava dentro… Pelo tanto de boas intenções, de ideias do bem, de orientações parentais, de dedicação, técnica e afeto que essa mãe amiga minha coloca em tudo o que ela faz e oferece ao mundo. Amparada pelo direito do acaso, das coincidências, de estar no lugar certo na hora certa. Podia ter sido o parto de um dos gatos do meu condomínio, cheio deles, ou da construção do novo espaço que idealizamos para as crianças, aqui entre a vizinhança, prestes a nascer. Mas foi do livro da minha amada amiga Paula. Olha que sorte a minha…

Começando hoje a missão que eu mesma me apropriei de “parteira” dessa vida, desse livro. Desse novo parceiro de sol, de caminhadas debaixo do braço, de recreio do meu agito familiar, de silêncio, de novas direções, pelo menos nos próximos dias… Sem falar dos frutos que posso “comer do pé” no que tange aquilo que alimenta o meu lar, a minha nova família e o compartilhamento de filhos.

Ansiosa para conhecer esse novo “rebento” de cento e quatorze páginas de “direção”, depois te conto! À amiga Paula, o que dizer… Já faço parte da vida do “Manual para Pais Separados”. Obrigada pelo privilégio de me demandar que pegasse a correspondência… Foi um lindo parto.

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