Lembro-me de assistir os adultos correrem. A vida de todo mundo era mais ou menos igual para mim, que assistia de baixo o mundo acontecer. Criança, vi os que cresciam na minha frente fazerem faculdade, namorarem alguém que ficasse, casarem e terem filhos. Escolherem por uma carreira e nela se enraizarem. Não via ninguém questionar a correnteza. Poucos resistiam a ela e em algum momento sucumbiam, subiam na sua embarcação e cumpriam a rota da viagem proposta como caminho natural.

Os finais não foram iguais para todos, isso o trajeto padrão não garantia. Alguns seguiram na mesma direção a vida toda. Outros, não viram as coisas acontecerem como o esperado e tiveram que ajustar velas e mudar de caminho. Às vezes em uma das escolhas, em outras, em todas elas. De repente roubados da única perspectiva de futuro que conheciam se atrapalhavam, não sabiam como recomeçar, se seria possível ou merecida a chance. Nem todos envelheceram dignamente. A vida propusera um caminho regular, mas nunca prometeu nada. Nem poderia assegurar aquilo que nem ela sabe, já que por concepção, ela é passado e presente, somente.

A vida, como nós, vive enquanto habita. Do passo à frente não sabe nada, e eu, criança, não via ninguém questionar os resultados futuros daquilo que decidiam seguir, além do aparentemente provável ao rebanho. A fórmula parecia ser a mesma para todos e as chances de vitória, uma tendência quase certa. Assim como eram as características dos campeões. Agressivos, valentes, gente que passava por cima da dor como quem tira grãos de areia do sapato e segue adiante. Quanto menor a sensibilidade frente aos movimentos das águas do viver, mais forte, bem sucedido, virtuoso e vitorioso.  

Mulheres fortes, as quais se comportavam aparentemente como homens, rígidas e ameaçadoras, eram raras. E foi assim que coloquei os pés ainda pequenos na vida adulta. Meus nada especiais pés trinta e seis, como o da maioria. Tenho curiosidade em conhecer a história de outras meninas do meu tempo e de como começaram a construir suas vidas, se com a sensação de que seria necessário ser uma fortaleza dura para ter valor. Pois comigo foi assim, e eu subi em todos os cavalos encilhados que cruzaram o meu caminho e arredores com vigor e armadura. Nova, já tinha um excelente trabalho e uma promissora carreira executiva. Tinha sangue nos olhos, uma agressividade focada que me deu muito do que eu tenho hoje e que me anestesiou da dor, do sentir. Só que um dia eu acordei perdida, já não sabia onde eu estava. Doía tudo e não doía nada. Eu não dormia, vivia como podia, e não sentia. E foi então que entrei no túnel que me transformou em outra, nessa que sou hoje.

Outro dia, em uma conversa com alguém importante na minha história, ouvi que eu teria me tornado uma pessoa mole, sensível. Que eu havia perdido a “gana”, a força, me tornando irreconhecível. Talvez cochilado na vida. Ouvi com olhos parados a fim de entender cada parte daquela imagem minha. Quem sabe não fosse verdade? Quem sabe essa calma que vem acomodando o meu coração não fosse um antídoto perigoso à minha independência e sucesso? Quem sabe onde estará aquele gosto de sangue na boca do qual não lembro mais e pior, sequer sinto falta?

Então me vi criança de novo e olhei para cima, para aqueles “grandes” que me cercavam. Aqueles que tiverem uma vida boa e aqueles que não tiveram a mesma sorte ou juízo, ou ainda, destino. E daquele lugar, com a bagagem de uma mulher de quarenta e poucos nas costas pequenas, já não queria a mesma coisa. Provavelmente não teria escolhido a mesma vida. Em um sinal de que aprendi, e na impossibilidade de cortar o caminho que me ensinou, descobri a vida incrível que há quando andamos mais devagar, menos agressivos, com sangue nas veias, deixando para a boca apenas o doce do que amamos e o amargo do que eventualmente atravessamos. E mudar essa lido frente a percepção alheia, e ouvi-la depreciar aquilo que valorizamos é um caminho exigente e que vive na maturidade.

Acho que fiquei mole… Não é muito melhor que dura? E como água lenta e constante, venho atravessando assim.

Em mim, eis algo que descobri virtude e que me caiu como uma luva.

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