Essa semana só se falou no episódio do Oscar no qual o ator Will Smith acerta um “tapa” no apresentador “piadista” Chris Rock, que sobre o quadro de deficiência da esposa do então vencedor do Oscar de melhor ator, fez graça, fez “bulling”. Na semana passada a turma de mães da escola passou dias a fio falando dos episódios de violência física protagonizados por um menino de onze anos da turma do meu filho. Recebo relatos diários de um grupo de Whatsapp da turma da minha filha mais velha, sobre as frequentes cenas de desrespeito dos alunos em sala de aula, incluindo o uso abusivo do celular durante os períodos de explanação dos professores, conversas paralelas e bagunça generalizada, com direito a enfrentamentos, revoltas e intimidação. Uns alegam o descontrole dos líderes intelectuais, outros, a falta de limites das crianças. Trabalho com pessoas o tempo todo, em projetos distintos, e tem sido frequentes as cenas explosivas que violam o direito do outro, invadem a intimidade, brincam com vulnerabilidades, julgam indiscriminadamente a posição alheia.

Parei para pensar: está bem que talvez o Will Smith, em vias de receber o Oscar, não precisasse realmente submeter-se como protagonista de uma cena na qual perdeu totalmente o controle das suas emoções, sem calcular prejuízos, contexto e plateia. Mas por que não, se ele não é melhor que eu ou que você? Quem de nós consegue controlar seus instintos e suas emoções o tempo todo, principalmente quando nossos maiores afetos são ameaçados? E se os meus valores e as minhas dores são diferentes da sua, como podemos julgar uns aos outros pela forma como reagimos em determinadas situações? E um “tapa” é pior do que uma agressão verbal? É mais justa, menos dolorosa, menos humilhante? E como uma explosão de felicidade, não se trata da erupção de sentimentos não menos legítimos como a dor, o medo, a raiva e a exaustão?

Ficamos confinados por muito tempo. Agora quase parece passado longínquo, mas não foi. Foi ontem que tivemos licença para sair do confinamento das nossas cavernas. Quantas onças, quantos bichos selvagens não “criamos” dentro de nós mesmos enquanto dormíamos e acordávamos vivendo as nossas vidas entre poucas paredes e com as mesmas pessoas, sem respiro? Quem, mesmo amando a própria vida, não nutre válvulas de escape por aí afora, que não puderam ser acessadas por tempo demais?

Lembro-me de ver a violência crescer no meu filho Joaquim, quando passava dia após dia do sofá para a cama, jogando “Fortinite” e jogos de celular… Podia sentir a pressão arterial dele, podia ouvi-la aguda, barulhenta, revoltada por não ver espaço para extravasar. Lembro do choro aquele “sem motivo” que vinha aqui e ali deles três, e que dizia tanto! Pedidos de socorro, de saudade, de vontade de sair correndo, de medo de terem perdido amigos, da escola não abrir mais, da vida não existir mais como um dia foi. Tudo tão real, apesar da “cara” ser a de um sonho ruim.

Lembro da violência crescer em mim, quando perdia a paciência no lido com os meus filhos, o trabalho remoto, a escassez financeira, o medo de adoecer, de perder quem eu amo. Quando chorava de desespero no banho ou me atacava dos nervos, de chambre mesmo, na cozinha, por conta do farelo no sofá recém limpo ou das roupas jogadas no chão.

A gente ouviu pouco sobre tragédias dentro das casas entre pais e filhos, poucos “tapas na cara”, chutes nas partes intimas, bulling ou ameaças de quem divide ou compete muitas vezes pelo mesmo espaço no mundo. No aconchego da família a maioria de nós se aquietou. Se debateu no abraço conhecido dos seus, em livros, nos próprios lençóis, nas telas da “vida à parte” dos smarthphones.

Muitos de nós buscaram terapias das mais diversas, mentorias, meditação, lugares de aprofundamento e cura, já que a ausência de algo melhor, mais livre, criou novos espaços e questionamentos. Outros de nós, talvez a maioria, por percepção, usaram do tempo ócio para consumir informações ditas por aí e tecer metros e metros de opiniões sobre tudo. “Eu acho assim, ou assado” passou a ter voz nos canais democráticos e únicos disponíveis na internet, gerando um mar de “consultores para assuntos aleatórios” com dicas e opiniões sobre tudo e todos.

Uma arena de outro tipo de violência se estabeleceu. Aquela que passou a se dar dentro de cada um de nós no processo de atravessamento do isolamento do mundo e a que se edificou nos espaços virtuais com armas como os “filtros” e as palavras. Seguindo e cancelando sem dó nem piedade. Vivendo a mais profunda solidão e exercício de poder sobre a história do outro, a cutucando com vara curta e virtual.

Aí a gente tem permissão para enfim sair das contenções. E ao nos vermos livres, a velha violência, aquela que conhecíamos e que, na sua forma mais genuína, se via presa a ranger os dentes e a mancomunar seu próprio retorno à ativa, sai desenfreada. Desmedida, erodindo das nossas profundezas, dos lugares que apenas nós conhecemos e que por um tanto de tempo foi o nosso retiro de enfrentamento único e exclusivo. Nosso único destino possível, nossa única morada pequena e confinada.

Não me surpreende que a piada da semana tenha sido de tamanho mau gosto e desumanidade, nem que um “tapa” deliberado tenha sido destinado àquele que simbolizou a dor e a maldade para o agressor, talvez o canal que precisava para extravasar, o limite. Ambos transbordaram seus excessos. Nem me surpreende que crianças tenham reagido com violência nas escolas, que reações no trânsito, nos ambientes de trabalho e mesmo nas festas tenham sido demasiadas, e que a depressão e a atrapalhação sejam presença frequente nas cenas da gente, assim como ansiolíticos e antidepressivos. Surpresa não é a palavra, ou estaríamos ignorando o que vivemos e fizemos de nós mesmos quando estivemos tanto tempo cerceados do convívio social com a nossa comunidade, com o mundo, com os quais aprendemos e evoluímos tanto, além de conhecermos a partir dessas relações, mais sobre nós mesmos.

Lambemos feridas e estancamos sangue por muito tempo… Então o caso, sinceramente, não é de se julgar, né? Talvez nos questionarmos sobre o que vamos fazer com essa força que vem nascendo da gente com tanta violência, sim, possa ser um caminho. Menos moralista e mais corajoso. Até porque, esse tanto de pressão, sentimentos, dores e expectativas precisam sair de alguma forma. Então que seja com trato à nossa humanidade.

O mundo precisa de mais amor. Na prática, de mais acolhimento às travessias exigentes do outro. De menos julgamento. De mais reflexão e olhar para si mesmo e para aquilo que está pronto para erodir daí. Dos “tapas” que distribuímos pelas nossas mãos e bocas e que buscam alívio, redenção e paz. Tem caminho… E pode ser que dia desses saiamos do prumo e façamos algo que nos envergonhe, quem nunca? Neste dia, seria bom ser acolhido para recomeçar, direito que todos nós temos.

É o que eu desejo para o Will e o seu merecido Oscar, para o Chris e suas piadas americanas inteligentes e às vezes infelizes, para o coleguinha do Joaquim e seu transbordo de emoções, para mim e para você, que “estapeamos” a nós mesmas e aos outros aqui e ali, eventualmente. Porque o mundo precisa de mais amor. De recomeços, de perdão e de cura. E os nossos atos dizem mais do que posicionamentos públicos sobre a vida alheia.

Começa por não julgar. É só o que eu acho…

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