Não sei como lembro algo da minha primeira casa na vida. Era um apartamento pequeno na zona central da cidade. Eu e a minha irmã do meio éramos as únicas ainda, devíamos ter três e quatro anos. Minhas lembranças daquele apartamento escuro são boas. Lembro de um coelhinho que ganhamos e que espalhava suas fezes no formato de sucrilhos de Nescau por toda a parte. Lembro da minha mãe reclamar dele e da bagunça. Ela, professora, corrigia provas na mesa de jantar e cuidava da gente. Lembro dela e do quarto dos meus pais. Das portas de persiana que davam em um pátio pequeno e árido onde brincávamos felizes com as nossas bonecas.

Depois veio o apartamento da Rua Viador Porto. Lembro-me do nome, pois o achava bonito. Imagina tão pequena, tinha simpatia imensa por esse prediozinho simples do bairro Santana, da cidade de Porto Alegre. De lá lembro mais. Do salão de festas no subsolo, logo embaixo do meu apartamento térreo, dos janelões da sala que davam para a frente do condomínio, parecidos com os que tenho agora, aos meus quarenta e três, no meu escritório de casa. Deles ouvi minha mãe nos chamar para ver a neve inédita caindo em um dia frio na nossa cidade. Ela ia receber as amigas para um chá aquele dia. Lembro da salinha de televisão, do quarto meu e da minha irmã, dos meus pais, da cozinha. De uma briga nossa de criança que resultou em uma queda da minha irmã na ponta da mesinha da sala, e que nos levou ao pronto socorro. Do desmaio da minha mãe por conta de uma trombose, dos nossos dias sem ela. Lembro também de vizinhos queridos, um menino que era também um grande amigo, de uma infância divertida e solta no corredor aberto daquela morada.

Depois veio o “apartamento grande”, uma conquista dos meus pais. Ficava na saída de emergência do Hospital de Clínicas. Quando escuto passarinhos e latidos de cachorro hoje, lembro que lá eram sirenes e que elas nunca foram inconvenientes para mim. O lar tem isso, né… Quando a gente se sente em casa, reconhece a conquista daquele espaço, pouca coisa nos atrapalha. Aquele apartamento barulhento, mas não para mim, do qual posso lembrar com detalhes, dos mámores antigos do único banheiro e da entrada, aos rodapés, foi um lugar feliz. Posso sentir agora o quanto ele era confortante, o quanto me sentia privilegiada com aquele teto.

Cenas voltam a minha mente de tanto em tanto, algumas mais marcantes. Uma febre na cama da minha mãe, ela me cuidando, a visita do meu avô. A minha irmã menor me pedindo a mãozinha para dormir… A gente ficava tão pertinho, as três dormindo juntas! A menor fazia isso direto, lembro da minha permanente dor no braço, por conta desse prazer. Um banho com rubéola, eu e as meninas assistindo “Chaves” na tv, a chegada da nossa cachorrinha, a primeira, uma falsa “poodle microtoy”, que veio a crescer. Pintinhos da feira de filhotes que de tempos em tempos moravam no banheiro de serviço, e o dia em que recebemos a notícia da morte do meu avô, internado do outro lado da rua. Quando vi meu pai chorar pela primeira vez. Quando chorei abraçada nas minhas colegas de escola, que me surpreenderam no velório, na minha primeira perda consciente na vida. Quando me dei conta de que havia crescido e que não haveria mais na minha mente só flashes de vida, mas as marcas de um caminho todo.

Saí deste endereço com dezesseis anos. Ainda lembro com saudade daquelas escadarias de mármore claro, característico dos prédios antigos e de certa forma sofisticados da região do Bom Fim. Do namoro naqueles degraus em tempos menos violentos. Dos amigos correndo naquela travessa movimentada, brincando de esconder. Mas também, da nossa felicidade frente a mais aquela mudança de casa. Foi quando mudamos para perto do rio, onde moro até hoje. Quando meu pai realizou o sonho dele de morar em uma casa. Onde vivi meus amores mais importantes, minhas maiores mudanças, tombos e renascimentos. Onde minha irmã engravidou de gêmeos, ainda moça, onde fui pedida em casamento em um jantar de casa cheia e onde decidi, mais tarde, por não me casar, não daquela vez.

Foi nesse endereço que pesaram as consequências das minhas primeiras decisões e das que vieram depois. No mesmo lugar onde ainda posso ouvir o som do violão que tocava no meu quarto enquanto o meu pai tocava no dele. Onde mergulhei na piscina e chorei embaixo d’agua, fracassada por uma nota baixa em matemática, que me desclassificou no vestibular. No lugar que me recebeu após um ano no exterior, para recomeçar. Para onde voltei quando me separei e ainda não tinha meu novo lugar pronto para pousar com a minha nova família.

Dia desses ouvi minha mãe se negar a sair daquela casa, da última mudança dela e do meu pai, da última nossa como família. Como não resistir quando um lar é também o lugar de tantas histórias? Onde tudo tem vida, cada canto, cada janela, cada som, hoje mudo, que ecoa na memória? Se quando entro lá, ainda nos vejo circulando pelos corredores com as nossas histórias acontecendo, com o barulho das nossas vidas em movimento, como a minha mãe poderia abandonar essa caixa de memórias tão facilmente?

A maior parte da vida da gente acontece onde pousamos. Onde vivemos a vida que escolhemos, onde juntamos os nossos “mijados” e adormecemos com algum tipo de segurança e conforto. Lugar onde guardamos o que nos é caro, para onde voltamos após as nossas lutas e onde criamos os nossos filhos. Os vemos crescer e um dia, irem embora, deixando marcas nas paredes, nos móveis, no jardim que sempre esconde uma bola murcha ou uma tampinha de coca-cola, arma de uma implicância pré-adolescente. Eles guardam as nossas mais profundas passagens, as mais ordinárias. Nossos dias mais baixos e para onde corremos e vibramos com “nossos botões” nos mais altos. Onde fazemos a nossa prestação de contas íntima, onde respiramos fundo seja para seguir, seja para recomeçar. Pois nem tudo cabe em uma caixa e está tudo bem quando o desejo é de ficar, quando não achamos suficiente guardar só na memória, e quando é possível, é claro.

Quando não é, e cá entre nós, sabemos bem o quanto a vida pode se transformar e inviabilizar a perenidade de um só lar, a gente guarda com amor o que pode. Registra, quem sabe escreve sobre em algum lugar… O que vivemos define quem somos e isso é tudo o que temos. Então, vale o esforço. E um dia, quem sabe, passa adiante. Tem quem adoraria acessar mais cenas da própria vida. Eu, por exemplo, só queria lembrar mais.

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