Dá trabalho respirar. Não respirar involuntariamente, não para sobreviver. Respirar para viver bem, para atravessar a vida conectado à sua própria paz, quero dizer. Esse movimento exige. Assim como é exigente amar o outro. Maternar, viver em casamento, construir uma rotina na atividade profissional que se gosta, se relacionar com quem desafia o modo que conhecemos, para o qual fomos “criados” e, principalmente, é exigente demais transformar tudo isso em algo respeitoso, sadio e virtuoso.

Falo de quando se faz urgente rever-se, revisar a forma, recomeçar. Quando a vida em movimento nos convida, nos provoca ou nos impõe mudar tudo o que somos até o ponto que urge virada, que deixa de ser confortável, que perde o sentido, que pede novos sonhos. E sonhar também dá trabalho. Esse movimento todo dá.

Entender que a vida é um passeio, mas que eu não vim para passear foi um divisor de águas para mim. Nesse trajeto que recebemos de presente há espaço para tudo e isso só multiplica possibilidades, não garante que sejam boas nem que não tenhamos uma jornada de desafios necessários para saírmos melhores e com a sensação de termos aproveitado tudo para o nosso bem maior. A gente confunde esse universo imenso com felicidade, subestima o trajeto e seus acontecimentos. A gente confunde oportunidades com felicidade. A gente confunde paixão, amor, sucesso profissional, maternidade, viagens, “passeios” com felicidade. Quando felicidade é o “eu”. Só o “eu” pode ser feliz. Em qualquer lugar, sob qualquer condição. Só ele pode, só ele se permite, só ele percebe, só ele sente, aproveita  e valoriza. Se não tem ele, não tem qualquer tipo de felicidade. Prazer talvez, mas não a jóia da coroa.

A vida passa a ser mais que trabalho quando o “eu” é consciente e ativo. Passa a ser trabalho com satisfação, trabalho com propósito, trabalho com alguns prazeres, com paz, com significado. 

Vim de uns poucos dias de folga no interior do Estado onde moro. Passei dias em Santa Maria com a família do meu esposo, a qual “eu” decidi viver como minha. Dá trabalho, mas dá felicidade. Inteiro é melhor que meio até quando o assunto é mais gente para se importar, mais sofrimento ou mais exigências. Não divido sobremesa, nem desafios que são meus. Fomos para lá para enterrar o irmão da minha sogra logo após nos despedirmos na nossa cidade de uma das melhores amigas dos meus pais. Nessa mesma semana uma grande amiga redescobriu o amor após anos separada. Poderia dizer que estava focada na própria reconstrução, mas seria mais honesto lembrar que ela andava era desacreditada, não focada. Então baixou a cabeça e trabalhou. E no movimento natural da vida a coisa aconteceu, o amor se apresentou convite, fez algo novo nascer. 

Então, enquanto uns morrem, outros nascem.

Encontrei nos mesmos dias outra amiga querida que está descascando uma “moranga rija” com o que a vida apresentou para ela nos últimos meses, que mexe com tudo que acreditou que poderia ser o amor, a família, relações de trabalho prósperas, mas que, sabedora de como a vida não é fácil, mas é boa, como o trabalho é, ela também se reconectou a um sonho antigo e vem construindo ele enquanto afia a faca de corte e decide se descasca a “moranga” ou leva sua raiz com casca e tudo para o seu novo presente, este que só ela pode escolher viver. 

Encontrei ainda outra amiga, amada e de longa data, que alimenta o meu afeto por ela pela sua valentia e desprendimento para recomeços. Lá veio ela com novas ideias animadas, como uma criança que cai e sente que não foi nada, se fazendo pronta para a próxima volta… De uma resiliência inabalável. Eu e ela sabemos que recomeçar exige se juntar, se refazer, reconstruir perspectivas, suar em direção a uma nova possibilidade… Mas a vida é trabalho e ela sabe. Então levanta e vai de novo sabe-se lá para onde, torço que para o sucesso, como sempre.

E como sempre, sem certezas, a vida é movimento, é trabalho que se mede, mas que não garante. 

Sentada em uma poltrona em frente a porta de desembarque do aeroporto espero meu filho com um balde de café Starbucks e uma saudade gostosa no peito. Uma semana em Minas Gerais com o melhor amigo, a primeira viagem de avião sozinho, a primeira semana com o celular novo, a primeira com um celular. Não a primeira sem mim, pois na rotina do compartilhamento já nos despedimos e nos reencontramos com saudades algumas vezes. Mas a primeira sozinho, nem lá, nem cá. E morreu a nossa primeira vez, a nossa inocência no ninho vazio, a nossa ilusão de que o universo seria lá ou cá, quando o mundo é tão grande para ele quanto é para nós. 

A vida é trabalho. Terei que trabalhar nessa pauta, no fato de que o mundo é grande e está aí para eles colocarem as mãos na massa, e eu também. 

Chegaram famílias inteiras nos voos que antecederam a chegada do Joaquim. Em um desses reencontros, um homem da minha idade abraçou de forma comovente o outro que o esperava. Sugeri que fossem irmãos. Aquele abraço de saudade tinha traços de história longa de amor. Até beijar se beijaram. Depois vieram outros abraços, cunhadas, sobrinhos, mãe, suponho eu. E então, mataram a saudade. Sempre morre algo enquanto a vida acontece. Morre a espera, nasce um presente bom ou desafiador. Um reencontro, a convivência do que vive longe, uma nova despedida por vir. 

Vai saber, a vida é trabalho, e trabalho nem sempre é bom. 

Por isso os refúgios, os ferrolhos, os intervalos aqui e ali. As mini férias, a capacidade de degustar um bom vinho, um bom filme, uma boa companhia, um bom momento. Por isso também a desesperança que nos assola vez ou outra, o vazio, a falta. Espaços para serem preenchidos pela consciência do valioso presente ou daquilo que precisaremos reinventar sempre se fazem e trazem mais trabalho. 

Meu filho chegou. Precisei apresentar o meu documento mesmo com toda a minha saudade latente para provar que sou a mãe. Alívio, a vida devolveu o meu filho mais um pouco. Na sequência a minha filha mais velha aportou em meio a chuva sob sua cabeleira cheirosa para um chamego longo. Ganhei tempo. Todos em casa. Então, ascendemos a lareira e, de casa cheia, voltamos à nossa vida presente. Dá trabalho. Até quando? Sempre. Igual a hoje? Nunca mais. Hoje com eles, amanhã para dar conta do que vem. Quem sabe? 

A vida é boa, mas é trabalho. Que venha. Afinal, viemos para ele, não a passeio, como dizem por aí. 

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