Diz a lenda que a a águia é a ave com mais longevidade da espécie, chegando a viver até setenta anos. Só que quase na metade desse caminho, lá pelos seus quarenta, esse bicho cheio de possibilidades precisa tomar uma seria decisão.  Seu bico está curvado de tão grande, já dificulta a alimentação. Suas unhas enormes e flexíveis já não conseguem agarrar a presa. As penas velhas, grossas e pesadas já a impedem de voar. Então é preciso subir em um monte bem alto é lá ficar por em torno de cinco meses, a fim de viver um processo de renascimento que exige coragem. Pois exige arrancar o próprio bico, martelando-o na parede rude até que caia, depois as unhas e depois as penas, e aguardar o processo de regeneração que tem o seu tempo até o dia em que esteja pronta para recomeçar.

Estou vivendo as vésperas do meu aniversário de quarenta e três anos e, no meu tempo, aparentemente um pouco atrasado se comparado com o da águia, venho arrancando partes de mim, uma a uma, com a fé de que de cada cicatriz nascerá o novo que irá me recompor. Algo nascido daqui que precisei, com medo mesmo, arrancar fora já que não me levaria longe se em mim ficasse. 

Como a águia eu já não conseguia mais me alimentar. Meu “bico” curvo e longo de quase quarenta e três anos já não falava por mim, se atrapalhava na interpretação do básico, daquilo que genuinamente me representa. Então venho batendo com ele em uma pedra dura e, dolorosamente, venho perdendo pedaços dele. Minhas unhas longas, mesmo que flexíveis, já não agarram meus novos sonhos, também tenros, e talvez por isso, exigentes da minha mais generosa decisão e capacidade de escolhê-los simplesmente porque eu mereço, e agarra-los com força e confiança. Minhas penas, o que me reveste, já não tem a leveza que permita novos voos. Insistem em me lembrar a todo o momento que o meu tempo já era, que a vida está decidida, ou que eu estou atrasada para recomeçar. Então, arrancando bico, unhas e penas, tudo que me trouxe até aqui, é como venho preenchendo os meus dias. Arrancando aquilo que, ou está morto, ou só me atrapalha. E isso exige uma paciência que descobri não ter. Que me desafia diariamente, me exigindo respirar fundo para não me afogar em ansiedade. 

Bico novo, penas novas, unhas firmes, venham logo! É tudo ou que eu desejo, ou me devolve a tranquilidade que um dia eu tive em ser aquilo que veio a morrer! 

Nada… A espera é uma ciência. Um aprendizado profundo que pouca coisa na vida oferece, além da dor.

Isso tudo parece poético e talvez até seja. Mesmo porque pensar que nós e as águias passamos por escolhas e processos semelhantes na vida, com as mesmas promessas e buscas por seguir capaz de ir adiante com “vida”, seria bizarro se não poético. Então melhor a poesia. Melhor nos vermos como ela, como parte da natureza vivendo a sua própria jornada. Poderíamos morrer com bicos, unhas e penas que já não nos permitem avançar com competência, gana, saúde física, emocional e mental. Poderíamos ignorar que`a frente, a possibilidade é de dobrar o nosso tempo, viver tudo de novo, e que bom seria podermos fazê-lo com vitalidade… Poderíamos simplesmente viver com partes mortas da gente até que a vida definitivamente aniquile o resto. É o que possivelmente parte das águias fazem ou a tal estatística não existiria. É o que grande parte de nós faz quando decide não romper, com medo e coragem, o que na gente já está morto, já não tem viço, já não toca, não move, não representa e pior, ainda traz sofrimento.

Do meu monte alto, espero. Que os recomeços em tudo na vida voltem a ser presas minhas, e que eu possa agarra-los com o que nascer de tudo o que venho arrancando, a “duras penas”. No lido com os meus adolescentes e com a criação de uma menina amada que chegou mais tarde, quando o meu bico já andava curvado. No trato com os movimentos do casamento, do outro, que se transforma ao meu lado com bico, unhas e penas que eu não poderia avaliar. Quem seria eu, afinal? Na arte de idealizar coisas novas, caminhos surpreendentes, e em meio a tudo isso, manter no meu coração de águia a bagagens dos lutos que vivi, das partes que se foram e da esperança pelo que pode vir `a frente. É coisa, e é exigente. Mas também me parece ser da nossa natureza.

E então, arranca tudo ou espera a morte? Agora me diz você…

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