Ela dançava com a inocência de uma menina de quarenta e poucos. Pode? Claro que pode. Inocente? Parte da gente sempre é, e que bom. Somos muitas, de muitos modos, mas em uma pista de dança somos tão parecidas, tão generosas, tão amigas… Nos encontramos comuns, na mesma. Dançamos faceiras “Roxette” como nos velhos tempos, aos pulos, cantarolando as letras tatuadas na pele. Choramos as lembranças do que foi e do que não foi entre abraços, taças e passos dos anos oitenta. Como em uma viagem por si mesmas, vivemos ali tudo ao mesmo tempo, na mesma vida curta. E a nossa menina se movimenta cada vez com mais leveza enquanto amadurecemos, como se a infância voltasse a bater na porta a pedir espaço na cama, sob as cobertas. Até que o pezinho balança e a sua irreverência nos leva à pista.


Eu observava aquela “amiga mãe” a dançar. Sabe a frase “quem vê cara, não vê corre”? Pois no corre, no movimento do seu corpo a dançar com o marido, dos olhos a perambular entre ele, si mesma, o salão e a música, do coração e da pressão a pulsar viva de novo nos salões da vida, ela me pareceu outra. Não aquela que encontrava sempre na saída da escola a buscar as suas crias, sobre a qual mal eu poderia tecer percepções, dissertar. De movimentos mais rígidos, certeiros, focados no objetivo de levar as crianças para casa em segurança no caos de uma saída escolar, eu não via a menina dela. Não a conhecia, não podia ver o seu encanto, nem de longe. Enxerguei de repente, naquela pista de dança, os sonhos escusos, a mira sutil no todo, no nada, o revirar de olhos, no seu parceiro de passos e carícias, a curtir o prazer do som, do sim para a música, para o balanço de si mesma. Vez ou outra as mãos se encontravam com as dele, se interlaçavam e se liberavam para o voo solo, para o encontro com outras, com amigas. A liberdade se espalhando de célula em célula como um câncer agressivo fez se ver a beleza da evolução de algo bom no corpo. De algo que não adoece, mas rejuvenece. Fez torcida por ela, para que aquilo nunca acabasse, para que a música fosse eterna. Torcia eu, torcíamos umas pelas outras.


Talvez esteja aí a importância do prazer dos movimentos por si mesma, daquilo que acontece na dança, no sexo, na degustação de uma taça de vinho bom, no papo com as amigas íntimas, na risada leve, na conversa sem telas de proteção ou redes com aquele que deixamos entrar na gente. Porque neste ato somos livres como meninas serelepes. Nossa liberdade mais genuína brota no suor da testa, no coração que bate mais forte, na gargalhada que se liberta do jeito que é, na opinião que insiste em pular da gente, nos movimentos de carinho com o nosso próprio corpo, quando passamos a mão na coxa, viramos o cabelo de lado ou seguramos com jeitinho, com afeto, o próprio pescoço. Adoro acariciar meu lábio e a minha sobrancelha… Às vezes vamos tão fundo que nos abraçamos a si próprias, e que gostoso que é. Como uma conchinha, reverenciamos a nós mesmas ao invés de esperar que alguém o faça. Meninas são assim, livres, amantes de si mesmas quando soltas.


Vê-la girar na pista, levantar a cabeça de olhos fechados para curtir cada nota, cada segundo do corpo solto até que a noite acabasse me deu esperança. Tanta menina solta por aí, no auge dos seus 40+… Tantas dançavam lindas pelo salão, tantas mulheres vivendo a liberdade, embaladas por sons conhecidos, mesmo que só ali, em um momento pontual de um dia longo, de uma vida toda. Talvez por isso as pistas sejam cheias de mulheres. Talvez sejam arenas da vida onde podemos simplesmente relaxar, fechar os olhos e combinar passos sem grandes pretensões, sem precisar provar nada, exercitando o erro, o sensual, cambaleando, virando taças, brindando, seduzindo e abraçando umas as outras. De um simbolismo de emocionar por ser algo muito nosso. Meninos admiravam meninas, cortejavam aquela vida selvagem a dançar como se fadas fossem. Rodas inteiras de meninas cercadas por olhos curiosos, apaixonados, surpresos. E sem nada a dizer, tudo se deu pela dança. Nuas, falamos com o corpo, sob a luz fosca e a música boa. Era isso e era o suficiente para uma noite brilhante. Repleta de meninas felizes independentemente do tempo.

Amei encontra-las na roda. E aquela que me chamou a atenção deixa hoje parte da saia de tule à mostra no traje de “mulher mãe”, aquele que a deixava irreconhecível antes, na saída da escola. Posso ver a fita vermelha da menina escondida sob as suas madeixas longas depois daquela pista. Posso imaginá-la. Posso ver seu sorriso de menina aqui e ali, enquanto recebe as filhas e reencontra as amigas. O que mais se pode querer senão deixa-la vir, a nossa menina, a girar quando identifica um lugar onde ela pode correr, voar as tranças, cair, tocar-se, lembrar-se de quem foi e de quem é?

Na pista ela pode. E pelo menos ali, é livre. O bom de frequentar o baile é que as marcas dessa liberdade vão ficando visíveis na vida, mesmo na saída da escola.

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