É um livro. A personagem principal, uma pediatra, traduz muito do nosso “lado B”, das que escolheram pela maternidade, por relacionar-se fundo com o medo e seus prazeres. Aquela parte da gente que se debate nas demandas de mulher, que não gosta de criança, que acha a relação amorosa algo de tamanha exigência, gastura e promotora de tantos desconfortos, que prefere uma vida só dela com tudo no lugar e do jeito que quer, sem o ataque do querer de outro. Na relação com os pais, mantém distância de segurança. Deita na rede da certeza de retaguarda e em troca garante a sua presença fantasma, sem esforço. Representa a nossa “diabinha”, aquela pequena de nós com um “garfinho e guampas”, que sobrevoa o nosso lado esquerdo e assopra a exaustão, o limite, o cansaço dos pesos de sempre e que, quase sempre, são sobrecargas oriundas do lado A.

Ela representa a gente nos dias exigentes, nos dias que a vontade é de jogar a toalha e sair correndo.

Cecília, a pediatra, é assim. Aquela que na nossa maioria, não fomos. Quem não decidiu pela constituição da família com medo das perdas, medo esse maquiado de desinteresse. Independente, torce pelo desencontro com as coisas e com as pessoas a fim de se manter ilesa, íntegra, sem ranhuras ou transformações. A vida sem grandes esforços e sem buscas por grandes sonhos ou idealizações anda relaxada, devagar, descansada, e nela se sobressai o poder da escolha só para si, da velocidade que se quer, do tom que está a fim, receita fácil quando se tem apenas a si mesma para atender. No mergulhar da leitura meu movimento natural foi percebê-la um ser incomum, um feminino tão diferente de mim que me fez senti-la menos mulher ou talvez me sentir menos uma, tamanhas as nossas diferenças operacionais. De fato as vidas de quem escolheu viver só, e de quem encheu a casa de afetos, representam completos opostos. Mas isso seria uma fotografia equivocada, um retrato de família ou da “não família”, mas não a dinâmica das pessoas, da vida real.

Cecília sem ninguém, eu com cinco, tentando acomodar todos sorrindo em um retângulo quase impossível. Oito e oitenta, como se assim fôssemos. Simplórios e previsíveis. Porém, fui entendendo Cecília e a mim mesma conforme evoluía em cada capítulo. Vi muito de mim nela, vi em mim partes da pediatra distante, desgarrada. Talvez pudéssemos ser o anjinho e o diabinho da mesma pessoa, de qualquer uma de nós. Talvez constituamos partes da mesma mulher, de todas elas em uma só. Alguns dias mais “guampudas”, em outros mais resignadas. Por vezes mães dedicadas, em outras, mulheres ansiosas por voar voo solo. Talvez tenhamos tudo isso em nós. Todos esses dias e essas faces. A vontade de estar cercada daquilo que escolhemos e no qual reconhecemos suas retribuições, e a de nos vermos sós e em paz com os nossos botões, e só, sem compromissos sem garantias de retorno sólido.

Semana de provas na escola dos meus filhos maiores. Ontem me vi entre exercícios de matemática, a tensão de quem precisava ir bem de qualquer jeito para garantir a recuperação do primeiro semestre, e daquela que se auto exige ao extremo e pensa jamais estar pronta, por mais que se dedique. A pequena cortava os cabelos da Barbie loira para ficar igual aos da mãe e nisso, cortou o dedo com uma tesoura de bebê sem pontas. Eu, de pijamas e grampos no cabelo, me atordoei entre a demanda dos três. Não acontece sempre, mas acontece. De repente, aquilo que é rotina e que já estou mais do que acostumada a dinamizar com desenvoltura, pesou fundo. Pensei: preciso de férias. Mas não tenho perspectiva delas agora. E então? Então peguei uma taça de vinho em plena segunda, ascendi a lareira na noite de meia estação, necessária apenas ao meu clima  de frio interno, enrolei papel higiênico no dedo da pequena para estancar o sangue, emprestei fones de ouvidos para a maior se concentrar no ambiente ainda agitado, cortei melão para o do meio e liguei um jazz relax do Spotify na caixa de som…

Por alguns minutos tudo parou. Eles se acalmaram nas suas ansiedades. E eu peguei “A Pediatra” querendo momentos de paz. Nos encontramos ali, nos parecemos de repente. Queria a vida dela naquele segundo, me permiti a aproximação, a amizade oportunista. Durou quarenta minutos, talvez um pouco mais. Com cada um no seu quadrado, vivi com a minha taça, a lareira e o livro “do meu lado B” uma pequena pausa na loucura que a vida pode ser quando estamos exaustas.

Ainda não sei como Cecília termina. Me parece que a Juliana nela vem a povoando, mesmo que ainda sorrateiramente, como uma diabinha. No fundo queremos tudo. A experiência ampla da gente mesma. Mãe, mulher que curte, que se realiza, que faz bom sexo, que é mãe e que vive com autonomia. E na impossibilidade de sermos tudo ao mesmo tempo, temos dias e dias. O arroz com feijão é bom, mas nada como a surpresa dos pratos diferentes, exóticos ao nosso paladar. Nos encontrando, aqui e ali, nós e a pediatra Cecília do livro que indico, diga-se de passagem. Somos um filme, não uma foto.

Sinto falta da Bahia, mas não é hora. Sinto falta da casa vazia, mas sei que vai passar. Terminei a taça e deitei um pouco com cada um, na cama deles. Bastou deixar a Cecília entrar para eu perceber que parte dela sempre esteve aqui. E para reafirmar a vontade de tê-los, os meus, de sentir o cheiro e vivenciar o barulho, mesmo querendo muitas vezes estar só. Tudo na mesma vida. Tudo na mesma mulher.

Vai entender. Talvez a paz esteja em aceitarmos que somos muitas. E assim, firmarmos posição. Tem dias e dias, fazer o que? Não é um privilégio só nosso querer o céu e a terra, o ordinário e o extraordinário, o dia e a noite, a água e o vinho! Somos todos assim e que bom. Menos aprisionados em um, livres em muitos.

Se fez sentido, indico a leitura de “A Pediatra”. Cecília é o nome dela. E se você se achar em alguma partezinha que seja, então nos encontramos. Somos mais parecidas do que imaginávamos.

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