Ouvi a definição de “escrava moderna” atribuída às mulheres mães de hoje em uma série francesa outro dia. Aquela expressão gritou nos meus ouvidos… Escrava de quem? Me perguntei na hora. Do marido? Superamos isso em partes, acredito, já que mesmo sob o guarda-chuva de uma sociedade patriarcal, o que é inegável, hoje já nos posicionamos dentro da relação em algum grau. Já somos parte nas decisões e nos submetemos ou não, por escolha própria, ao que nos é ofertado no relacionamento afetivo. Já temos lugar de importância à mesa, nas decisões financeiras da família, mesmo que eventualmente ainda em desequilíbrio. Escolhemos as nossas profissões, sonhos, dividimos algumas tarefas, também em algum grau, e somos voto válido na definição das férias de verão e da troca de carro, além de tudo o que envolve os filhos e que sempre foi nosso território.
Também não somos escravas dos filhos, pensei eu. Essa relação somos nós que orquestramos, afinal. Eles fazem conosco o que permitimos que façam. Outra parte a vida faz, é dela, e aí se trata de jogo de cintura, maturidade e resiliência, já que criar filhos é uma aventura escolhida que dá trabalho. Então a palavra “escrava” não se aplicaria nessa relação, pelo menos não me parece.
Dos pais, será? Daqueles que nos deram a vida e edificaram conosco os nossos valores, o nosso caráter, que nos ajudaram nos contornos da nossa personalidade seja pelo DNA, seja pelo exemplo, seja pela orientação ou pelo abandono? Não… não me parece justo. Afinal, na maioria dos casos que eu conheço, mulheres não dividem o mesmo teto com os pais, nem dedicam tanto do seu tempo ao atendimento a eles, agora retaguarda afetiva mais distante, com outro endereço, quando existe e não é só um incômodo, o que é só triste. Escravidão não seria apropriado em uma relação que vai ficando tão eventual, para o bem ou para o mal…
No trabalho? Fez menos sentido ainda nestes tempos ditos “líquidos”. Está ruim, troca. Exigente demais, troca. Longe demais, troca. Abusivo demais, troca e pronto. Então, escravizado pelo trabalho? Não faria nenhum sentido. Não, não…
De repente leio o que escrevi e me sinto uma mulher dos anos noventa de rolos na cabeça reconhecendo a vida mediana com frases literais sobre a jornada feminina moderna. Rasa como um pires cheio d’água.
A escravidão feminina moderna não pode ser provada, o que justifica essa leitura ensossa da gente e dos nossos direitos adquiridos e tão básicos. Não sei exatamente como te mostrar a olho nu, de forma incontestável, o que talvez também justifique o tanto de invalidação dos nossos trabalhos, do nosso berreiro, exaustão e bandeira. Daquele universo invisível do qual damos conta e que mantém a ordem e o progresso das coisas. Só posso dizer que ela existe e que somos escravas de nós mesmas porque você vai me entender. Você vai sentir fundo o que eu quero dizer. Porque somos todas e não temos como pedir alforria que não para nós mesmas que temos integrados na gente o desejo dos outros durante uma história toda.
Nosso capataz mais cruel vive dentro, em nós. Nos cobra que sejamos mais mães do que estamos sendo. Mais sexy’s, mais bonitas e jovens do que a nossa idade acusa, mais magras, mais bem sucedidas no trabalho que for, mais presentes em casa, mais independentes financeiramente, mais amorosas, mais compreensivas, interessantes e, quem sabe, melhores donas de casa, já que uma casa organizada e uma cozinha com boas escolhas alimentares para a família ainda são pautas em rodas de casais de amigos na mesa do jantar, atribuídas às melhores “mulheres mães”, que dão ou deveriam dar conta disso. Ou essa era uma provocação capciosa a algum pai? Não, não, acredito que não.
Dito assim, é com desconforto ainda que sigo na luta diária por me desamarrar das minhas próprias correntes, daquelas que enrolei em mim ou que me deixei enrolar, que suponho ser uma escrava de mim mesma em processo de libertação. Escrava daquilo tudo que escolhi carregar na vida, por indução ou não, por cultura ou culpa. Que decidi aceitar, assumir por vaidade, gula ou inocência mesmo. O caminho não é fácil e nem é culpa de ninguém.
Responsáveis são aqueles que nos incitam na busca do impossível, conhecidos ou não? Talvez sim… Estes são oportunistas que tem suas vantagens nesse contexto. Mas a principal responsável mora na gente, na nossa alma. Quem aceitou o desafio de ser tudo isso e ainda assim se sentir sempre em falta com si mesma e com os outros. Sempre correndo. Sempre atrasadas, sempre cansadas. Quando escolhem por si, quase sempre culpadas. Se não, com o pé na jaca, negligentes, loucas. Com o seu prazer quase sempre incompleto, intoxicado pelo que fez e pelo que deixou de fazer. Mas sempre prontas para começar de novo porque assim são todos os dias, e não recomeçar geraria culpa também. Nossa fortaleza não nos permitiria. Somos mulheres, e se historicamente renascemos tantas vezes, está aí a nossa natureza.
Então, que a nossa carapaça linda, moderna e “empoderada” não nos distraia daquilo que nos aprisiona silenciosamente e que vive dentro de nós, que se alimenta da nossa cultura, da perfeição imposta nas redes sociais, do reconhecimento do externo e daquilo que se sobressai na vida de uma e de outra, e que não vive eventualmente nossa própria, por serem as nossas virtudes outras. Ninguém é tudo. Talvez as escravas sejam… Mas e aí? Deu né? Já não eram para existir mais.
Assinei a minha carta de alforria, uma carta de intenções. O brabo é que preciso lembrar disso todos os dias para não cair em escravidão de novo. Porque a triste verdade é que a gente se acostuma.

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