Você já tentou entrar em uma conversa sobre traição? A de alguém do entorno, ou sobre a hipótese deste episódio na sua relação? Ou mesmo na defesa de uma realidade vivida e amarga, seja na posição de traidor, seja na de traído? Não há meio onde ele não gere polêmica, nem assunto com tantas opiniões adversas. Há sempre um ângulo novo para justificar ou punir o ato, e é unânime o julgamento. Me parece que não evoluímos tanto assim, pelo menos na compreensão e debate deste assunto.

Fiquei curiosa quanto ao exato significado da traição, quando ela toca as pessoas de forma tão diferente, tão individual. A dor que causa nos aparentemente “causadores” e a posição que coloca cada indivíduo, se na de vítima, de autor, de coautor, de culpado, amoral, sujeito com razões para o ser ou receber de volta, ou simplesmente pelo direito que cada um tem sobre a sua própria vida, faz variar o efeito do ato de trair e ser traído em cada um. Busca justificativa, seja na sua história de vida, seja nas relações que construiu. Seja sobre quem a parceria é, ou sobre quem se é quando está com ela.  Fui então ao “Google” e achei o seguinte:

“Traição, como uma forma de decepção ou repúdio da prévia suposição, é o rompimento ou violação da presunção do contrato social (verdade ou da confiança) que produz conflitos morais e psicológicos entre os relacionamentos individuais, entre organizações ou entre indivíduos e organizações.”

Soou raso e pragmático para mim, e até confuso, mas o que esperava encontrar em um dicionário digital, afinal? Talvez algo novo, que me trouxesse pontos de vista distintos, ângulos diferentes.

A psicoterapeuta belga Esther Perel, famosa por falar de sexo e infidelidade de forma aberta e cheia de possibilidades, sugere que a obsessão tradicional por transparência total e intimidade sufocante acaba com o desejo, e que o erotismo, fruto da ampliação de possibilidades e enredos da vida, seria, segundo ela, um antídoto para a morte da relação. Ou seja, ela traz a traição, este ato tão humano e corriqueiro, para o palco da reflexão e das novas interpretações e possibilidades.

Me chamou a atenção como são distantes os pontos de vista dela, da Wekipédia e do senso comum, com a sua moral e bons costumes. E trouxe a reflexão com o intuito de navegar, não julgar. Afinal, cada caso é um caso, cada macaco no seu galho, cada um sabe da sua história a quatro paredes. E entendi que vale o olhar quando a partir de traições, de histórias que chegam para mim e das suas diferentes sensações e desfechos, há vários lados, várias cadeiras. Vários nomes. Além do “traidor” e do “traído”, ou do culpado e da vítima. Ouvi histórias de dois culpados, e de nenhuma vítima. Histórias nas quais a fortaleza estava no traidor, e em outras, maioria delas, nas quais a força estava no ser traído. Tem histórias em que a infidelidade foi construída a quatro mãos, em outras, por duas perdidas, desconectadas, o que fez o ato parecer injusto com alguém. Enfim, a questão é que o exercício de enxergar todos os lados deste ato comum em tantos relacionamentos, e que em tanto permeia a transformação das famílias, valeu para mim e espero que valha para você.

Mudei o olhar, e não quero dizer que ainda não mudarei mais. Gosto da reflexão exatamente porque ela proporciona a ampliação dos significados das coisas e a consideração pelas pessoas. Ninguém é igual a ninguém, nem os sentimentos íntimos são então, nomear, definir, me parece “agrupar e empacotar” histórias e indivíduos aparentemente semelhantes e “etiquetar” o tipo ou a forma como pensam e agem. E é tão difícil nomear o sentir! Mesmo a dor, que em cada um apresenta uma potência, uma fonte, uma causa, uma conexão, que a faz diferente em cada ser…

Foi o que eu senti quando me coloquei na cadeira do traidor julgado e apedrejado, e que é o caso de tantos que eu conheço e acompanho. E percebi o quanto essa posição me pareceu tão ruim quanto a posição do ser traído.

Há vários tipos de traição. São muitas cenas, motivações e afetos diferentes e, por isso, compará-los passou a não fazer mais sentido para mim. Os sentimentos do traidor consigo mesmo são tão complexos que a traição é o de menos. Estão por vezes perdidos, sem clareza, sem certezas. E aqui não falo que temos como ter certeza de alguma coisa na vida. Mas ter certo o que se sente no presente, na presença de nós mesmos, é pressuposto de paz. E não saber mais o que se quer é, além de humano, muito doloroso, pois traz à nossa superfície uma bússola quebrada.

Há também o traidor de ocasião, daquelas que fazem o ladrão que já é tendencioso ao crime. Este parece desconectado do afeto profundo, daquele que se entrega e se vulnerabiliza. E permanecer no raso muitas vezes é uma escolha de medo do amor, do relacionar-se de verdade, ou mais ainda, da perda e da dor que ele pode trazer. Vai saber… Não parece justo, mas o que é justo na vida? E quem está junto também escolheu ser parte dessa injustiça e talvez dela faça a sua conveniência.  Se coloca na posição de ser enganado, muitas vezes enganando a si mesmo. Tem também o traidor que se atrapalha. Não aguenta os tirões da vida a dois e busca analgesia fora dos problemas que as relações reais de parceria trazem.

Quando falo “reais” aqui, não quero menosprezar qualquer tipo de relação que se estabeleça neste mundo. Aprendi no tempo e nas histórias que tive o privilégio de conhecer, que a relação boa, de verdade, é aquela que se estabelece a contento pelos seus participantes. Sei que é uma péssima comparação, mas até no crime me parece ser assim. Relação boa é a que funciona bem e que faz feliz aos dois. Então, deixemos de lado os padrões. São “reais” quando existe um acordo mútuo e ele é respeitado por ambos, o que me parece um preceito básico do relacionar-se. Então, dizer que a traição é uma quebra de contrato, se trair não estava no acordo de parceria, pode-se dizer que está correto. Que isso não é bom, aí já é relativo, já que vi pelo caminho alguns casais que reinventaram suas relações por conta de um ato desleal no casamento ou mesmo criaram através dele a saída necessária…

Mas confesso que ainda acredito na transparência total e na intimidade sufocante, e esta sou eu. Pelas experiências que passei na vida fui tirando o excesso da intimidade que poderia me corroer e mantive a transparência. Não vou mais ao banheiro de porta aberta e evito me apresentar de um jeito que nem eu mesma me aprovaria. Penso antes de falar, pois entendi que o ouvido do outro não é “pinico”, como se diz “popularmente”, e que ganhei um cérebro e nasci um ser racional para isso, para pensar antes de simplesmente combater, e não para verter emoções atrapalhadas. Encontrei no meu relacionamento amoroso um parceiro para amar, não um psicólogo, coaching ou mentor, nem um parente ou um amigo. E isso tem me ajudado a definir a relação boa para mim, na qual não caberia a traição.

Mas essa novamente sou eu e a minha dificuldade de estar onde não estou inteira. E se vale colocar, acredito que os lugares nos quais a traição nos coloca não são fáceis para ninguém, não havendo pior, ou melhor. Apenas personagens de um acontecimento que viu janela naquela relação. E se acontecer aí, é decisão de cada um quanto ao que fazer, sem falsa moral nem bons costumes, já que nenhum deles pode nos salvar da dor e da escolha. Se fecha a janela ou se pula por ela. E está tudo certo desde que você saiba quem é, porque está ali e pelo que vai se mover. Aí sim a traição servirá de verdade para alguma coisa. E acredite, ela sempre serve.

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