É mês da mulher. Mês de permear a travessia que o nosso gênero vem cursando na vida, na construção de liberdade, autonomia, direito e voz. Quando falo em voz, não se trata só de falar. A busca das mulheres é falar o que sente a respeito, viver a liberdade a seu modo, se constituir autônoma no pensar, no agir e no produzir, e em todas essas cenas participar em igualdade de direto e olhar com os homens, parceiros de jornada.
Nesse trajeto viemos evoluindo “à duras penas” em ambientes sempre exigentes e hostis ao exercício da vontade do feminino e ao reconhecimento do seu oferecimento. Até aqui nenhuma novidade, não é?
Sabemos todas, por cultivarmos na gente episódios próprios, que o caminho da equidade é longo e tortuoso, já que parte dessa realidade se sustenta na cultura e na ancestralidade humana, o que faz o machismo ter vida própria na gente, e muitas vezes, ser “executado” pelas próprias mulheres. Quem nunca?
Ocorre que muitas transformaram de forma significativa a nossa realidade, construindo o tanto de conquistas das quais usufruímos hoje. E percebi um ponto comum na trajetória dessas “abridoras de caminhos”: a presença da tristeza profunda.
Foi a tristeza, o desconforto do lugar que ocupamos por tanto tempo e que nos incomodou, se tornando intolerável, que moveu as mulheres desbravadoras. O que nos trouxe até aqui foi a dor de perceber a injustiça no direito, no julgamento quanto ao nosso “existir”, o que é por natureza peculiar a qualquer ser humano. Foi vivenciar a violação emocional, financeira, moral e da própria liberdade. Foi experienciar a ausência do afeto, da própria fala, do “ser considerada”, e cansar. Foi o abandono e a invalidação do nosso sentir e dos nossos desejos. Foi o desequilíbrio no “tocar a vida” em um mundo que exige e oferece a todos, mas que ainda diferencia “gênero”, desafiando ainda mais as mulheres, colocadas ainda sob desvantagem, portanto vulneráveis, e em ato contínuo, tristes por essa realidade.
Foi a tristeza que nos tirou do “lugar nenhum”, não considerado, para um lugar mais nosso.
Carol Conká, recém saída do BBB 2021, deu uma entrevista este final de semana dizendo que é uma pessoa que não chora, que não deixa a tristeza se apresentar, abatê-la, ter um espaço qualquer nela, abafando-a na vida, mantendo-a escondida atrás da figura de “fortaleza” e segurança. E fiquei com pena. Por ser ela uma mulher renegando o sentimento que sempre foi a nossa maior luz e combustível para mudanças na nossa trajetória feminina. Logo a tristeza, que diz tanto sobre a nossa humanidade. Sobre como nos sentimos no lido com os afetos na gente e como ilumina ainda mais as nossas escolhas na vida, determinando também as nossas portas de saída, a hora de usá-las e os nossos sonhos.
A tristeza é fruto do olhar, do “se dar conta”, do tomar consciência. É por profunda tristeza com o que se dá nas relações de casamento que se transformam, que o movimento do divórcio acontece. É pela tristeza de perceber a dor dos filhos, mesmo a potencial ainda não sentida claramente, que buscamos construir melhores fins, com mais respeito. É pela tristeza que sentimos pela ausência na vida deles da presença diária de pai e mãe, que nos empenhamos no ato de compartilha-los. Que nos colocamos aprendizes de novos formatos.
É pela tristeza que nos causam as inverdades, os desencorajamentos, os desinvestimentos, os julgamentos, as diminuições, os limites e os fardos, que nos movimentamos, negociamos, vamos mais longe como mulheres, profissionais e mães. Quando nos sentimos desrespeitadas e essa conquista passa a ser algo vital, logo sobre aquilo que a gente vivia sem. É por tudo o que nos desacomoda e inconforma, que sentimos, no acolhimento da tristeza profunda, a hora de lutar, reivindicar, se apresentar, levantar e sair, batalhar e recomeçar.
É acessando a dor que a mágica acontece…
Foi assim com Joana D’arc, Maria Quitéria de Jesus, Rosa Parks, Yoani Sánches, Kathrine Swistzer, Malala, Simone de Beauvoir, Katherine Johnson, Coco Chanel, Bertha Lutz, Leila Diniz, Virginia Woolf, Melinda Gates, Brené Bronw… Mulheres, apenas algumas delas, que movidas pela dor da consciência de uma realidade, mudaram a sua história e a nossa.
E foi assim com a Juliana Silveira, com a Marcia, com a Paula, com a Gisele, com a Andreia, a Daiana, a Miriam, a Renata, a Maria, a Mariana, a Sofia, a Carla, e eu ficaria aqui dando nomes até o dia clarear…
Porque essa tristeza, que permitimos chorar na gente, é quem nos permite também esgotar a dor. Enfrenta-la, diminuir seu poder sobre a gente e criar caminho diferente de lido com ela e com o mundo.
O reflexo? A mudança.
A real transformação na gente. A fim de que sejamos capazes de fazer o mesmo com o mundo e com quem está a nossa volta. E por isso lamentei que uma moça tão jovem e em posição de tanta influência tenha aberto mão, em rede nacional, da sua melhor arma contra uma guerra na qual estamos ainda no começo. Que ainda exige tanto caminhar. Que pede que tantas mulheres ainda se entristeçam ao ponto de movimentarem-se. De defenderem-se umas às outras nas cenas de cancelamento, violação e desigualdade que presenciamos diariamente. A ampararem suas filhas, a educarem seus filhos homens, a fim de transformar este mundo que ainda aponta mulheres divorciadas, mães solteiras, executivas sem filhos, debatedoras intelectuais, profissionais mães e mulheres livres como inadequadas, incapazes ou condicionadas a limites que não são delas. Desrespeitadas no seu direito de escolha, desencorajadas e envergonhadas.
Desejo que a “Carol” chore bastante. E que eu e você sigamos chorando. Em um ano que nos colocou de volta em casa, no lido doméstico e na gestão de tudo o que está em jogo no universo feminino, será a nossa tristeza que nos mostrará o nosso próximo passo em direção ao dia em que ocuparemos todos os lugares que desejarmos, que viveremos os afetos do jeito que nos caírem bem de forma livre, que as nossas funções sejam missões e não fardos, e que sejamos reconhecidas pelo nosso oferecimento, relevância e capacidade além da nossa aparência e comportamento adequado. Em linha com os demais seres humanos que nos acompanham.
Nesse dia, imagino um monte de mulheres marcadas pela tristeza vivendo a liberdade e a construção da felicidade. Como pedem as revoluções. E será lindo. Pois estaremos, cada uma, vivendo a sua própria história.
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