A mentoria está na experiência do outro oferecida à gente. Ela não vem de experts, de gente que fez curso na arte de ser “gente”, porque isso não existe. Não há formação para inspirar. Não há receita de bolo para se repetir e multiplicar quando se trata de atravessar a jornada humana. Pais são mentores, errando ou acertando. Escolhas que assistimos o outro fazer de forma genuína, são diamantes valiosos. E até vida abdicada em defesa de um determinado valor, intimo e particular, orientam, instigam, mexem na nossa caminhada. Sigo aprendendo com o meu pai e com a minha mãe, e com o privilégio de viver perto dos pais do meu marido, dos meus filhos, amigas e “mentoradas”, sobre dar conta da sua própria história… Gente que acompanho de perto, e que da mesma forma, vivo o prazer te tê-los “me” acompanhando assim também.

Neste último sábado meus pais chamaram as filhas e suas famílias para uma refeição juntos. Para convivermos, nos vermos, nos tocarmos da presença. E mesmo a ideia transgredindo as melhores práticas para este momento, no qual, em proteção a tudo e a todos, mantemos total distanciamento do mundo, fui convencida pela colocação coerente dele, que tocou o que é valor para mim. Meu afeto.

Ao nos convidar, em uma chamada de vídeo, me disse que se fosse para morrer de Covid, que fosse contagiado pelas filhas e netos. Que se fosse assim, perto da gente, daria conta de morrer feliz. Esse não é um exemplo a ser dado, nem sugiro que façam o mesmo nas suas casas e com os seus. Ocorre que aqui tocou o nosso valor maior, fez sentido e foi escolha. Falou mais alto o significado da presença neste momento para nós, que vivemos a eminência de perdê-los. A possibilidade de estarmos juntos em tempos nos quais a vida parece algo tão desafiado e até escasso.

Não há maior declaração afetiva, oferta, do que essa vinda do meu pai. Nos mobilizou ao movimento tão evitado por nós de protege-los do que eles na verdade mais precisam, e nós também.

Meus sogros vieram da cidade do interior na qual vivem, para o aniversário da nossa Antonella, no final de março, e disseram o mesmo, no ato do risco de estarem junto conosco. Nos deram o mesmo recado sobre o que é valor para eles e a que estão dispostos a arriscar para isso.

O assunto aqui não é a pandemia. O que quero dizer é que aprendemos sobre afetos com quem os vive e os escolhe. Mais tempo, mais experiências, é claro… Mas o fato de viverem ele, de escolherem por ele, os torna mentores dos seus, dos que tem o afeto como valor e se reconhecem em atos que o priorizam independentemente dos “manuais”, mesmo porque, viemos nos cuidando por aqui, pela escolha também por eles.

Outro dia, em uma cena de novela, uma esposa escolhe beijar o marido médico, com todo o risco que isso representa, por amor e admiração a ele, por afetividade e por empatia. Me emocionei na qualidade de pessoa presa em casa por mais de um ano, ao imaginar a importância de um beijo, de um abraço a quem está privado destes carinhos.

Fui com a minha filha buscar uma encomenda na casa de uma de suas melhores amigas, de máscara, e sem sair do carro, mesmo vendo um grupo delas juntas, reunidas, por consentimento das suas famílias. Surpresa, observei a minha filha não titubear no banco do carona sobre descer e abraça-las, mesmo abatida pela saudade. No trajeto de volta segurei a mão dela, emocionada pela dor evidente da sua escolha de permanecer congelada ali, no banco do carro e de máscara, sem correr para o abraço. A resposta que recebi, para o meu desconcerto, foi simples:

“Não sairia de jeito nenhum, mãe… Pelos meus parentes vulneráveis, meus avós, por vocês. Para mim este é o significado da ‘bandeira preta’, o que ela representa”.

Ali, ela também escolhia à quem, por um caminho. Uma escolha, uma renúncia, não é assim? E tão pequena, “escolhedora” das suas “opções” de contato, e independente da minha orientação, navega pela vida, a minha menina… Sob o que vem constituindo como valor particular.

Mentores estão por toda a parte. Oferecendo perspectivas, jeitos de fazer, olhares de outros lugares, muitas vezes nunca antes visitados por nós, seja por desconhecimento, por ignorância, seja por covardia, seja pela nossa concentração no cumprimento das “cartilhas” e receitas prontas, conselhos viciados, mesmo que bem intencionados, mas que nos tiram da observação da navegação na gente e no mundo sob os nossos olhos.

Ninguém é igual a ninguém, ninguém sente igual a mesma coisa, os fins, as renúncias e o peso das escolhas. Histórias são particulares. Sem “forma”, não podem ser repetidas, copiadas, reproduzidas. Só constrói repertório para criar saídas bacanas, alternativas novas, conexões verdadeiras, olhar generoso e afetos possíveis, quem navega na jornada sentindo particularmente a brisa e seus efeitos. Em si. No seu sentir, na sua dor, desconforto e no que traz a si, a sensação de se estar em casa. Ampliando seu olhar a partir de histórias contadas por outros e valores compartilhados, mas percebendo de que forma cada uma lhe toca. Criando assim a sua própria rota, seu modo, seu mapa. O trajeto íntimo, que não viola…

Sobre o que levar em consideração e vindo de quem, sugiro que sintas o amor presente na oferta e o quanto ele te liberta. Não aprisiona. Do quanto te encoraja a ouvir a voz baixa que fala aí dentro e que ninguém mais pode ouvir além de você.

Alguns mentores constituirão apenas referências quanto ao que serve e ao que não. Outros nos inspirarão com suas histórias por serem próprias e assim, incríveis. Outros ainda nos convidarão a mergulhar fundo, a caminhar solto, a experimentar o desconhecido, a descobrir o que temos dentro, e mesmo nos propondo liberdade, nos farão sentir que andamos acompanhados, amparados.

Não tem escola para isso. Tem mais a ver com empatia, com admiração e com coragem. E o que mais brilha nos caminhos humanizados e tão pessoais quanto são as jornadas das pessoas, é a presença da liberdade na arte de viver. De quem atravessa navegando, não se põe livre das tempestades ou daquele pôr do sol, e busca o seu próprio destino, sem que isso vire cartilha para ninguém além de um mapa de si.

No mais, respeito à história do outro é o primeiro passo para sermos livres, até na percepção de quem e do que nos sentimos “mentorados” na vida. Afinal, contrariando a máxima, sabe-se que nem sempre o respeito gera a mesma gentileza, mas ainda assim, gera uma possibilidade. Do contrário, não gera nada. E respeito é alimento da liberdade, a força que nos faz ampliar… O que o torna quase tudo.

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