A cada dia de mergulho na vida, como mulher e como mãe, fica mais claro o quanto o peso da minha bagagem influencia na minha vida adulta, na minha dinâmica íntima, no social e nas relações interpessoais, e não diferente, na condução da educação dos meus filhos.
Somos todas crianças feridas… Você se percebe assim aí?
Não é culpa de ninguém. Neste ato “culposo”, sem a intenção deliberada de ferir, vivemos uma infância cercada de violências sutis e outras nem tanto, fruto de uma cultura, de um comportamento comum à nossa sociedade, suas morais e bons costumes, e dos efeitos naturais da evolução da parentalidade, em frequente revolução.
Qualquer um, em qualquer momento da vida, tem a liberdade de ser pai e mãe. Não existe curso preparatório ou teste psicológico que avalie a capacidade de uma pessoa de gerar e se responsabilizar por outra. Para dirigir, para consumir bebida alcóolica e para assistir a filmes com “cenas fortes” e que provocam o nosso emocional existem regulamentações e determinações, mas para gerar crianças, não.
Também não existe regramento e boas práticas que garantam a proteção de indivíduos em formação no seio das famílias. Depois que nascem, torcemos para que aqueles pais deem conta. Também não se tem previsibilidade na vida dos afetos, essa que é palco para o desenvolvimento saudável de crianças, garantindo assim a eles o direito de serem crianças… Não havendo previsibilidade, não há como se preparar para o que é desconhecido. A vida é movimento e não para de apresentar situações novas para pessoas diferentes, peculiares, e na ausência de referências ou da melhor ideia quanto ao que tem que se fazer a respeito de determinada exigência, pais se atrapalham. Pessoas perdem a “mão”. Mudam de “lugar” na constelação familiar, repetem comportamentos disfuncionais da sua própria infância com os filhos, conduzem a educação com base no que lhes foi apresentado, no que conhecem, e reproduzem cenas muitas vezes inadequadas ao bem viver e crescer.
Estes somos nós… Cheios de boas intenções. Estes foram nossos pais e os pais deles no lido com seus próprios afetos e com o seu “embalo” e oferecimento aos filhos. Esse é o nosso assunto de Dia das Mães neste ano de mergulho profundo no lar, que trouxe à tona a importância indiscutível do pensar no que tange o “acompanhamento dos filhos” na vida, no que envolve a maternidade.
Outro dia li algo que me instigou: “O paraíso de um filho é a mãe, ou seja, parte-se do princípio de que uma mãe feliz se torna capaz de derramar este bem-estar sobre o próprio filho, o que por si só já bastaria para o mundo da criança em formação”. Se trata da primeira infância, é claro, já que criamos os filhos para darem conta do seu próprio mundo. Mas aqui, a psicoterapeuta e escritora Laura Gutman, dona deste pensamento, se refere ao cuidado que mãe merece, tanto de fora, do entorno, quanto no seu autocuidado consciente, considerando que o “paraíso” precisa estar nutrido e amparado para assim o ser.
Somos o paraíso dos filhos, somos o paraíso… Pesa a responsabilidade dessa verdade, mas na mesma medida, pesa o presente que é essa realidade. Ser o paraíso de quem mais amamos no mundo é um bálsamo, e por isso, merece o nosso cuidado redobrado com nós mesmas. Ser mãe significa sermos responsáveis, em primeira instância, pela abundância e “bons tratos” dessa que nos habita. Da mulher, do ser humano em nós. Da nossa escolha em maternar e de todo o trabalho que esta função compromete. Significa autocuidar-se e, em ato contínuo, constituir e nutrir um entorno que nos cuide. Pois somos todas crianças feridas, e se desatentas e descuidadas, repassaremos essa “saga” aos filhos, mesmo sem querer.
Na medida em que eles crescem, deixamos de ser paraíso, é uma verdade. Passamos de ninho, a ninho vazio. Ainda assim, ninho. Porto e referência dos mais profundos aprendizados sobre os afetos, a vida e seus lidos, o que me faz pensar que a mãe segue precisando se constituir de paz, de felicidade, de amparo e de consciência dessa necessidade que segue latente, para dar conta do caminho adulto dela mesma e dos seus, que vem logo à frente.
Todos nos sentimos abusados ou violados de alguma forma na própria história. Na própria infância, na vida materna. Em maior ou menor grau criamos filhos com as nossas verdades ocultas, medos, limitações, desencorajamentos e vulnerabilidades apresentadas nas mais diversas áreas da vida, todas fruto das raízes mais profundas do cuidado ou da falta dele. E então, repassamos as nossas feridas adiante. Na menor sensação de descuido que percebemos no trato da nossa infância e da nossa maternidade, o reproduzimos organicamente nas nossas crianças, seja pelo excesso, seja pela escassez. Do que for… Sem entendermos a dor e seus efeitos e faces, perpetuamos os nossos maiores medos na vida daqueles que amamos e que vieram abertos ao aprendizado do que poderia ser o melhor para eles, e que pelas nossas mãos inábeis, eventualmente, deixa de ser. Repassamos, mesmo sem querer, a mochila de pedras…
Vejo mães subindo ladeiras. Como lavadeiras com bacias pesadas na cabeça. O trabalho invisível da maternidade pesa, adoece e espalha seus estilhaços para todo o lado, possíveis de se identificar nos machucados abertos nelas mesmas, e na escassez emocional de muitas das nossas crianças. Estamos fazendo o possível no lido com a revolução que nós mesmas criamos. Essa que diminuiu a importância do trabalho afetivo, da formação de crianças, dos adultos do futuro. Que reduziu a pouco o valor da família, do amor e do cuidado.
Neste Dia das Mães, no qual está sabida e batida a importância da nossa função no desenvolvimento e amparo destes “seres do futuro” que já habitam os nossos lares, aos quais oferecemos presença afetiva e operacional de tantas formas diferentes e em tantas medidas possíveis, desejo mergulho fundo no cuidado da mãe que está aí. Da forma mais ampla que você possa imaginar. Que começa na consciência das suas cargas, nos seus pensamentos, sensações, autoestima, medos, memórias disfuncionais e tantas vezes duras, relacionadas ao que a infância foi e é para você, e que reflete no mundo que nos cerca, fora do nosso corpo, de uma forma tantas vezes descuidada, ignorada e violentada. Nos nossos companheiros, nossos sócios, nossos pais, nosso trabalho, nosso prazer, nosso sexo, nossas amizades e nossas escolhas de uma forma geral…
Todos somos crianças feridas pela tentativa real dos nossos pais e suas capacidades possíveis de nos colocarem no mundo, em contato com os seus oferecimentos e aprendizados. Todos vivemos dores, abusos em algum grau, exigências, perdas, despreparos e descuidos, todos passíveis da jornada do viver, da nossa evolução, e que não são culpa de ninguém. Cabe a nós nos cuidarmos e permitirmos que novos ciclos de saúde se iniciem. Que o ideal e o real se encontrem no possível, no autêntico, no conectado. Que dores sejam nomeadas e sentidas. Que filhos tenham como aprendizado a natureza dos fins e dos recomeços pelas mãos dos seus operários mais estimados. Que a mãe, grande geradora na concepção da família, se entregue ao autocuidado, e em ato contínuo, se torne capaz de reconhecer e se amparar no cuidado verdadeiro e legítimo ofertado pelo entorno, que é o que ela precisa e merece nessa jornada.
Que é o que precisamos e merecemos. Para o nosso dia, “mamães”?
Orgulho. Autocuidado e profundidade. Consciência, responsabilidade e autoreconhecimento. A cada dia que passa me surpreendo mais com o que mães são capazes. E o último adjetivo do qual me dei conta se chama apropriação da responsabilidade sobre um futuro melhor. É disso que se trata a força de quem sobe e desce ladeiras na maternidade… É disso que se trata. Do futuro.
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